Crônicas Intemporais
Luiz Hugo Guimarães

SUMÁRIO

Introdução / 5
Vendido o Serrador / 9
Reação / 13
Passarela na Duque de Caxias / 21
Adeus, trem velho / 25
As Bibliotecas / 29
O Pacote / 33
Ano II - Número 53 / 35
As Misses / 37
Dia da Indústria / 39
Laureano / 41
Os Namorados / 43
O Divórcio, afinal / 45
São João / 49
Agricultura em três estágios / 51
Mudanças / 53
Associação Paraibana de Imprensa / 55
Anistia / 57
Vamos Pechinchar / 59
A Importância de Dizer / 61
Monsenhor Pedro Anísio / 63
O Cochicho / 65
Cartões de Natal / 67
O Natal deles / 71
Reunião de fim de ano / 73
Horóscopos / 75
Carnaval da Velha Guarda / 79
Cabedelo em Foco / 81
Anistia (II) / 83
Lembranças Sagradas / 87
Relíquias / 89
Itinerário de Campina Grande / 93
Semana Santa / 97
O Velho Liceu / 99
Monteiro Lobato / 103
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Introdução

 

 

            Em fevereiro de 1977 eu era editor do Jornal de Agá, o qual completaria seu primeiro ano no dia 1º de maio daquele ano.

            O periódico semanal de Heitor Falcão era um sucesso. Sua vivência em sociedade lhe dera condições para editar seu próprio jornal para noticiar tudo o que acontecia em Sociedade & Adjacências, com assinantes em toda a Paraíba, e grande público na colônia paraibana do Rio de Janeiro e Brasília.

            O jornal não se limitava à crônica social, pois era bastante diversificado. Contávamos no seu corpo redacional com José Souto, escrevendo sobre Política; Lavoisier Feitosa, com uma coluna sobre Tênis; Sylvia Rique, falando de Etiqueta; Anco Márcio, com seu Mundo Alegre; Armando César Bezerra, escrevendo sobre Radioamadorismo; Orlando Henriques explorando o tema Automóveis; sobre Xadrez, escrevia Jeová Mesquita; Hélio Zenaide, como pesquisador, mantinha a coluna Ronda dos Arquivos; Luiz Hugo Filho (Hugo Leão) escrevia sobre Música; Antônio Barreto Neto garantia duas colunas sobre Literatura e Cinema; Rádio era o tema explorado por Hayton Santos; eu mesmo era responsável por uma página sobre Empresas & Empresários; José Cavalcanti contava seus “causos” no Papo Furado.

            O movimento social era a área do inesquecível e renomado cronista Agá, coadjuvado por Sônia Yost, sua mulher, talentosa jornalista. A ele pertenciam as colunas que prendiam o leitor, tais como suas implacáveis Reminiscências, Umas & Outras, Especial, O Broto da Semana, Mulher, Extra-Extra, Dia a Dia, Destaque, Gente Notícia.

            Faltava-nos um jornalista para uma crônica domingueira, suave. Convidamos o grande Gonzaga Rodrigues. Era o que nos faltava para completar nossa seleção de colaboradores.

            Gonzaga já escrevia em outros jornais, mas ficou de dar uma resposta ao nosso convite. O tempo foi passando e ele não se decidiu. Chegamos a anunciar seu breve ingresso no nosso corpo redacional. Por alguma razão especial ele não pôde reforçar o Jornal de Agá.

            Pensamos na Redação: “Vamos abrir espaço para uma crônica sob o pseudônimo de Zaguinha, e todo mundo vai ficar pensando que Gonzaga aderiu”.

            Dito e feito. Só que sobrou para mim. A partir do nº 42, edição semanal de 13 de fevereiro de 1977, na 2ª página, em duas colunas, foi iniciada a seção Assuntando e apareceu a primeira crônica assinada por Zaguinha.

            Este livro transcreve algumas das crônicas publicadas naquela seção, as quais, lamentavelmente, não foram do grande jornalista Gonzaga Rodrigues, mas do autor. Relendo-as, verificamos que são atualíssimas, como toda crônica do cotidiano. Por isso sua publicação, que serve também para mais uma homenagem ao grande cronista de sociedade – HEITOR FALCÃO DE FREITAS.

 

O autor.

 

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Vendido o Serrador

 (06.03.1977) 


 

 

            A notícia nos entristeceu e nos fez recordar o Rio de Janeiro com muita saudade. 140 milhões de cruzeiros foi o preço do velho Serrador, que agora será sede de uma subsidiária da Petrobrás, desaparecendo naturalmente aquela impressão antiquada do hotel mais famoso e seguro dos bons tempos.

            Os paraibanos ilustres que iam ao Rio lá se hospedavam; os menos ilustres ficavam no Hotel Rex, bem pertinho, mas o ponto de convergência dos paraibanos era o hall do Hotel Serrador.

            Quem ia resolver problemas importantes junto aos ministérios, tratar da liberação de verbas, de concorrências, de grandes jogadas políticas, obrigatoriamente se hospedava no velho Hotel. Era uma questão de status.

            - Onde o senhor está hospedado?

            - Estou no Serrador.

            Era o endereço dos bens sucedidos, de empresários, empreiteiros, políticos, personalidades ilustres e dos que queriam causar boa impressão.

            Os nordestinos quando voltavam de suas andanças citavam o Serrador e a tônica era contar os encontros com personalidades “vips” nos corredores do hotel. Dava muito paraibano por lá. Os que chegavam daqui levavam as notícias da terrinha, os de lá orientavam na solução das nossas reivindicações. Almoçar no restaurante “Night and Day” era chiquérrimo e emocionante. Melhor ainda era freqüentá-lo quando estava funcionando a boate.

            Se a gente arranjava boa companhia ia para o “Night and Day” curtir o Rio maravilhoso de refinamento,  de champanhota, e correr o risco de se encontrar com algum casal conhecido, cujos comentários de volta a João Pessoa quase deram em muito desquite aqui na província.

            Mas, valia a pena o risco. Era a certeza de encontrar lá o nosso Bolinha ao piano e Bôto na bateria, excelentes músicos paraibanos que lá estavam engajados com muita categoria no conjunto da boate. Aí o paraibano mandava.

            - Toca aí um blue, toca aquela (aquela era “Sublime Torrão”).

            E no forte calor de dezembro a fevereiro no Rio, era gostoso descer de camisa de cambraia de linho, dar uma volta em frente ao edifício do Senado, pela Cinelândia, depois entrar no dancing “Brasil” ou “Avenida” e curtir o friozinho do ar refrigerado, a dança dos velhinhos teimosos, o revezamento das orquestras de cordas e de sopro, a aparição de Ângela Maria ou de Elizete Cardoso, que por ali começaram.

            Era também o hotel das miss. Em maio ou junho não faltava gente para ir à portaria do hotel, querendo ver a miss da Paraíba.

            - Sou paraibano. Quero falar com a minha miss.

            Estamos bastante sentidos. Venderam nosso Hotel Serrador.

 

 

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Reação

(20.2.77)

 

 

            Meu vizinho lá da praia chegou indignado: “Isso não pode continuar. Quero ver onde está a fibra do brasileiro é agora. Você viu a campanha nos Estados Unidos para ninguém tomar o café brasileiro? Viu? Foi esse presidente novo assumir e começar o aperto. Bem que diziam nos comícios”.

            A indignação do vizinho era tão grande que fazia medo. Parecia que ia ter uma coisa. O rosto era dum vermelho apoplético, o pescoço inchado com a jugular da grossura dum dedo mindinho. A voz já meio-rouca-meio-fanhosa tinha um tom de fúria que aumentava com o exagero dos gestos, o dedão quase se enfiando pela minha cara, como se o culpado fosse eu.

            - E saiu no jornal que não vão comprar mais sapatos. Até tesouras, tesouras dessas de cortar unhas e tecidos, vão proibir – disse o vizinho afobado.

            São medidas econômicas em favor dos fabricantes americanos, é para proteger o comércio deles e a gente nem pode fazer nada se não vão dizer que queremos intervir nos negócios internos do outro país. Fui explicando, assim por alto, como funciona o sistema protecionista, mas foi pior.

            - E como é que eles se metem nos nossos negócios? – foi logo esbravejando. – Eles têm a bomba atômica e num querem que a gente tenha, não é verdade? Eu vi aquele rapaz bonito da TV falando nesse negócio. Hein? Como é que você justifica isso? Já sei que você é economista, conheci por sua conversa. Já ouvi você falando em não intervenção, tarifa protecionista, insumos, enxugamento, você não me engana, não. Você do lado deles? – continuou irado.

            Comecei a me preocupar. Era um vizinho amigo, mas só há pouco tempo vínhamos mantendo algumas conversas. No começo ele era muito fechado, estava se abrindo aos poucos. Mas, ontem veio da rua insuflado.

            - Não querem que a gente tenha bomba atômica. Já sei, quando a gente a tiver eles vão comprar nosso café pelo preço que quisermos. Mas temos que reagir logo. Onde o patriotismo do povo? Você é patriota?

            Não tive tempo de dizer nada. Nem sim, nem não. Quando quis explicar mais umas coisas, o vizinho já estava gritando: “Vamos reagir. Não compro mais coca-cola, nem pepsi. Eles vão ver”.

            Fui me encontrar com ele no dia seguinte, no supermercado. O carrinho entupido de compras. Tinha de tudo, só não tinha coca nem pepsi. Mas, tinha sabonete Lux, pasta de dentes Gessy, gilete, salsicha, viandada, leite ninho, maizena, aveia e até um pacote de cigarros Continental. Só não tinha pepsi nem coca-cola.

            Era um patriota.

 

 

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Passarela na Duque de Caxias

(20.3.77)

 

 

            Os técnicos da Urban e da Prefeitura, mancomunados com a turma do Detran, em nome da racionalização da gasolina, resolveram fazer da rua Direita uma ampla passarela. É a volta aos anos 20, quando a população pessoense era rarefeita e fazia daquela tradicional artéria o ponto ideal para o footing a toda hora, de dia ou de noite. Mesmo o bondinho puxado a burro, por sua pouca assiduidade, não atrapalhava o passeio dos transeuntes, os homens de chapéu de palhinha, as mulheres de vestidos longos e anáguas, e até anquinhas. Era a pacatês da província, da antiga Parahyba do Norte que os perrepistas ainda hoje se recordam teimosamente.

            Automóveis, poucos. Por sinal, o de Izidro Gomes, de Chico Mendonça, Vergara, tudo perré legítimo. Era a passarela da cidade, todo mundo se dirigindo para a praça do Passeio, a hoje João Pessoa, cercada de gradis, muitas pedrinhas no piso, o coreto interiorano para acolher a Banda da Polícia, com os dobrados que embalaram a mini-guarda da época.

            Agora estamos na iminência do retorno. Um retorno à moderna, com as nuanças da rua do Ouvidor, uma vez que pela Duque de Caxias o que se vê é casa comercial, de calçados, de tecidos, confecções, farmácias, loterias, padarias, jóias, móveis, livrarias, eletrodomésticos, etc. E os próprios comerciantes estão na dúvida se a novidade, que não é nova, vai prejudicá-los.

            Na realidade, o povo pessoense é todo motorizado, pelos indícios já levantados. É a cidade que tem mais automóvel, guardadas as proporções em relação às ruas destinadas a estacionamento. Assim, o povo se acostumou a fazer compras de carro. Chega na porta da farmácia, pára o carro: “Me dá aí uma cibalena”. A fila fica dupla. “Me dá o Jornal do Brasil”, pede o cidadão idoso ao volante do seu Dodge. E vem o guarda com o talão, já cansado de ouvir as mesmas explicações: “Seu guarda, agüenta a mão aí um pouquinho. Minha mulher está comprando os livros do menino”.

            Mas essa turma de técnicos quando bota na cabeça fazer uma coisa, faz porque faz. Já estão tirando meio-fio, botando meio-fio lá para as bandas da Lagoa, que vai entrar no mesmo esquema. Deu certo, deu; não deu, é só recuar quando se tem a coragem de transigir.

            Os comerciantes têm suas razões de advertirem para o fato de que poderão ser prejudicados. É o que dissemos. Os hábitos estão muito arraigados no uso do automóvel à porta do banco, à porta do vendedor de queijo, do jornal, de tudo.

            E talvez ainda não tenhamos população fixa e flutuante para encher a rua, como acontece na Ouvidor, do Rio, onde a massa visitante passeia admirando as vitrinas cariocas.

            De nossa parte, vamos apreciar a Passarela da Duque de Caxias. Vamos lá, a pé. Resmungando, mas pelo menos o nosso cafezinho não vamos relaxar.

            Salve a passarela!

 

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Adeus, trem velho

(28.3.77)

 

 

            Agora vão acabar com os trens. Nem para Recife, nem para Natal, nem para o interior. De trem, não. Quem quiser entrar no esquema de racionalização tem que se enfiar num ônibus.

            Parece que estava adivinhando. Outro dia peguei a mulher e os meninos e fui para a estação. Comprei as passagens e meti tudinho no trem, que já não era Maria Fumaça. Era na base do óleo diesel. Uma máquina aerodinâmica, sem carvão ou lenha para jogar na caldeira, mas era uma máquina com o mesmo apito de antigamente.

            E sai curtindo as margens do Sanhauá, o trem passando pela ponte, as casinhas da Ilha do Bispo, os fundos das casas do Baralho, o rio novamente.

            “Num é o Rio Paraíba? Por que o senhor disse que se chama Sanhauá?” – perguntou um dos meninos.

            Parou em Bayeux. Demorou pouquinho e o piuíte do trem anunciou logo a saída. Chegamos à estação de Santa Rita.

            - Salta todo mundo. Era só pra vocês ficarem conhecendo o trem antes que ele deixe de trafegar.

            E voltamos de ônibus para João Pessoa, os solavancos diferentes do trem que está se acabando.

            Foi aquele mesmo sentimento de tristeza de outro tempo. Quando cheguei a Rondônia estava com a cabeça cheia de literatura e histórias da Ferrovia do Diabo. Conhecia a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré palmo a palmo. E disseram: “A Estrada vai acabar, foi considerada antieconômica”. Não tive dúvida, peguei o trem até Guajará-Mirim, fronteira da Bolívia, no caminho para Santa Cruz de la Sierra. Uma saudade de coisas que não tinha visto, mas que tinha lido. Aqui passara Rondon. Ali os índios flecharam os gringos. Lá a febre matou muito negro barbadiano. E via os hospitais abrigando os trabalhadores que implantavam a ferrovia. E via o americano correndo para terminar o Canal de Panamá e chegar primeiro ao Atlântico. Desde Pedro II a luta para construir a Madeira-Mamoré, com capital francês, americano, inglês. Quando terminaram, o Pacífico já estava perto do Atlântico. O Canal ficara pronto.

            Mas conheci a Ferrovia do Diabo, antes que ela acabasse. Vi as serrarias encostadas à beira dos trilhos do trem, os seringais do outro lado do rio Madeira, já em território boliviano, os barracos como palafitas, o barco a motor margeando o Aripunã, os pés de macaíba sem folhas e frutos, a imagem dantesca da construção da estrada. Luta de 100 anos, para nada. Cada dormente sentado valia uma barra de ouro, diziam os velhos moradores. Em cada curva da estrada, um cemitério plantado. A odisséia dos desbravadores, cearenses e paraibanos, tangidos pela seca sonhando com o El-Dorado. Estão lá, as cruzes na estrada. Sem ouro, sem nada. E agora, sem estrada. “É antieconômico”.

            Agora, é aqui. Conheça o trem antes que se acabe. Dê uma voltinha. Vá até Sapé e volte de ônibus. Veja os canaviais ficando debaixo da fumaça e ouça o piuíte do trem. Um apito em cada curva, três apitos perto da estação. Vai acabar, não tem mais bacurau, não tem mais PN. Os técnicos disseram, não adianta insistir.

            Adeus, trem velho de minha infância.

 

 

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As Bibliotecas

(03.04.77)

 

 

            Passou por aí a Semana da Biblioteca. Ouvi muitas conversas de mudar a do Estado para onde foi a Faculdade de Direito; a Universidade fez solenidade com a sua já no “campus”; ia visitar a biblioteca “Pedro Gondim”, ali na rua Índio Piragibe, que está se acabando, mas não tive tempo.

            Parece que agora as bibliotecas estão sendo usadas somente para estudo. Ninguém pode mais comprar livro técnico, que os preços estão pelos olhos da cara. Então o nego se encosta por lá e vai pedindo livro de medicina, engenharia, livro difícil, que só o governo pode comprar ou conseguir. As faculdades tiveram que criar suas bibliotecas para atenderem aos seus alunos pobres, e a maioria o é, mas os seus livros são em grande parte especializados. Na Universidade Autônoma fiquei encantado com o ambiente. Foi instalada no austero ambiente da nave centenária do mosteiro São Bento, sob uma atmosfera claustral e a imponência canônica que obriga a meditar. No Instituto Histórico podemos encontrar muitas preciosidades e seus associados se vangloriam de ter muita coisa bem guardada. Na Academia de Letras, não fui. Corre um disse-que-disse que houve extravios inexplicados, recentemente, a ponto de muitos livros raros terem sido encontrados em sebo, à venda para colecionadores.

            O médico Maurílio de Almeida, na sua doce loucura, implantou uma biblioteca em sua residência, primando pela constituição de um acervo de relíquias paraibanas, possuindo muita coisa boa. Lá a gente tem a vantagem do excelente papo com o ilustrado historiador, que nos recebe com fidalguia ímpar.

            Eduardo Martins é outro extremado bibliófilo, mas muito fechado, juntamente com suas relíquias do arco da velha.

            Minhas recordações mais antigas descansam na Biblioteca da Loja Maçônica “Branca Dias”, na rua general Osório, quando, menino ainda, a gente entrava para ler revista e o velho Simões passava carão pela algazarra que a meninada da rua Nova fazia.

            Depois teve aquela vez em que fui à Biblioteca Pública, no tempo em que Ernani Batista era Diretor, logo após dele ter saído do jornal “A União” por causa daquelas eternas fofocas.

            A Biblioteca Pública ficava na esquina da rua Nova com a Peregrino de Carvalho.[1] Cheguei lá com meu guarda-chuva comprado a “seu” Romoff, pagando dois mil réis por semana. Mãe comprara aquele guarda-chuva para eu ir ao Liceu. Botei o guarda-chuva na portaria da biblioteca, pendurando-o numa grade que tinha logo à entrada. Pedi o livro de Zola, cuja leitura tinha deixado pela metade na semana anterior. Apanhei “Germinal” e embrenhei-me naquela atmosfera densa, pesada, que fazia de Zola o mestre da literatura francesa.

            A chuva continuava lá fora. Às cinco da tarde, na hora de fechar a biblioteca – a sineta já tinha tocado – entreguei o livro e fui apanhar o guarda-chuva.

            - Cadê meu guarda-chuva que deixei aqui?

            Procura daqui, procura dali, nada. Quem viu? Doutor Ernani não viu, o contínuo não sabia de nada. Olhei pelos cantos, por baixo das prateleiras, por entre as estantes velhas. Nada.

            Tanto sacrifício, dois mil réis por semana, e mãe não tinha nem pago a segunda prestação a “seu” Romoff.

            Enchi os olhos d’água. Dois mil réis por semana.

            Minha mais triste lembrança de biblioteca.

 


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O Pacote


(17.04.77)

 

 

           
É como fruta. Tudo tem sua época, seu tempo, sua estação. Quando está na safra, só dá uma coisa. Teve uma época de “conjuntura” e “contexto” que ninguém agüentava mais. Na conversa mais besta do mundo, lá vinha a conjuntura. O sujeito não se casava por causa da conjuntura, ou se casava por causa dela.

            Na área intelectual, se o freguês não estivesse inserido no “contexto” não teria hora nem vez.

            Com a preponderância dos tecnocratas na participação dos problemas nacionais, influindo nos altos setores administrativos, ditando o comportamento dos grupos empresariais, modelando as diretrizes econômico-financeiras, os caudilhos da tecnocracia moderna tomaram conta do mercado de palavras desusadas, difíceis, algumas até bonitas de dizer, e espalharam uma gíria técnica que a classe média absorveu como uma língua nova: O Economês.

            Aí a conjuntura, que não foi de todo abandonada, era explicada com excesso de demanda ou falta de demanda, e para resolver todas as dificuldades criadas pelos próprios tecnocratas surgia sempre um “elenco de medidas”. No meio desse “elenco” veio, recentemente, o desaquecimento da economia. Estamos, pois, na fase do desaquecimento, que parece vai demorar e tem que ver com a “estagflação”.

            No setor político, a “distensão” não foi só uma fase, foi uma mania entre partidários emedebistas e arenistas também. Mania que, apesar da conjuntura, ainda é lembrada como solução da problemática política, a despeito do recesso parlamentar, agora levantado.

            Surgiu, agora, o pacote. Pacote de medidas, pacote de projetos. A elite dirigente aguardando o pacote de reformas. E Zé Povinho pensando no pacote de café.

            Vai para Cr$ 80,00?

 

 


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Ano II - Número 53

(01.05.77)

 

 

            Fundar jornal é vocação da mocidade. Quem não teve na vida estudantil uma passagem para contar sobre o jornalzinho de sua época? Em grupos escolares, colégios,  “repúblicas”, repartições, cursos rápidos, clubes, em empresas, há sempre um jornalzinho, nem que seja um informativo, um boletim de fofocas.

            Não bastasse isso, ainda há os que de alguma forma tiveram sua iniciação na imprensa como revisor, repórter policial, foca ou qualquer outra função, pensando mais em ajudar os estudos ou sobreviver do que ser mesmo jornalista. Esses então ficam impregnados do micróbio de Gutenberg. Por qualquer coisinha fazia-se um jornal, um boletim, um panfleto.

            Papel e tinta são os ingredientes necessários. O jornal está feito. O primeiro, segundo número, o difícil é continuar. Não importa que seja diário, semanal, quinzenal, mensal, anual. Continuar, é o difícil.

            No Banco do Brasil fizemos um. Durou o tempo necessário para o gerente deixar de tomar atitudes desapreciadas pelos redatores, todos  obviamente escrevendo sob  pseudônimos, embora todos fossem perfeitamente identificáveis.  Dessa forma, “O Chocalho” durou pouco. No primeiro Curso de Relações Públicas que o professor Higino Barbosa Sobrinho fez na Paraíba, lembro-me que Rui Bezerra comandou um – “O Tubarão” –, que se acabou quando o curso terminou.

            Existiu, também, “O Cogumelo”, movimentado por João Albuquerque e Múcio Wanderley, que era órgão auxiliar do famoso bloco carnavalesco “Camisa Listada”. Parou quando o bloco encerrou suas atividades.

            Existem aqueles tradicionais jornais da Festa das Neves, que se renovam ano a ano, a maioria deles sem continuação. Anual, e já com foros de importância, tem o jornal da antiga Vila dos Motoristas, que é o tradicional testamento de Judas, aparecendo nos sábados de Aleluia. É difícil continuar.

            Por isso estou numa festa arrombada hoje, comemorando esse Jornal de Agá, que completou seu primeiro aniversário em meio às dificuldades habituais, arrostando muito olho grande e muita profecia de falsos profetas.

            Na embalagem desadorada  em que vamos, já estamos pensando no segundo aniversário, pois o segundo ano começa com este número, dando a todos nós a satisfação de ver gravado no frontispício da primeira página: ANO II - Nº 53.

 

 


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As Misses


(22.05.77)

 

 

            Estamos na fase do concurso de misses, uma programação anual na base da promoção comercial, que em épocas distantes já foi o sonho dourado de muita menina-moça.

            Nos primeiros concursos visava-se atingir a família acima da classe média. Foi assim que as primeiras misses Brasil e Paraíba pertenceram a famílias de alguma tradição, ou que já ostentavam prestígio social. Havia restrições, havia cuidado na escolha, e o padrão em voga tinha qualquer coisa que ver com comportamento moral, inteligência e eugenia. Mas, o tempo foi abolindo esses atributos com as promessas de vantagens pecuniárias, com vislumbres de notoriedade e passaporte para o estrelismo. Assustou as famílias tradicionais ou moderadas em termos de costumes.

            Hoje em dia essa faixa de família não concorda facilmente com a participação de suas filhas, sendo comum a oposição de pais, irmãos e até de noivos e namorados. A Igreja, de sua parte, passou a combater esse tipo de concurso quando os desfiles de apresentação começaram a caprichar no maiô reduzido.

            Assim, o padrão inteligência-cultura foi colocado um pouco de lado em benefício do porte e desenvoltura. Tem-se dito até que mulher bonita não precisa ser necessariamente inteligente, o que quer dizer que burrice não conta ponto negativo.

            Ao longo dos anos, o anedotário do concurso de misses dá para divertir e pode ser objeto de alentado livro. Lembramos assim rapidamente daquela candidata a misse que tinha como prato predileto o de porcelana, cujo “hobby” preferia ser de cetim e não gostava de Augusto dos Anjos porque ele comia cadáveres... Quando o júri era composto de intelectuais essas meninas sofriam o diabo, razão por que não é mais condição essencial para participar de uma escolha. O júri teria que ser composto por gente mais tolerante.

            Nunca nos esquecemos dum palpite de um desses organizadores de desfiles que privilegiava exclusivamente a beleza da candidata. Quando um dirigente de clube comentou que a misse tal era bonitinha, mas burra de mais, o promotor do desfile consagrou sua sentença definitiva e gloriosa: “Mulher burra não fala, mulher bonita sorri”.

            E a misse foi eleita.

 

 


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Dia da Indústria



(29.05.77)

 

 

            Há outros dias que fazem mais sentido para mim que esse Dia da Indústria. Gosto mais do Dia do Estudante, que eu me lembro quando a gente andava de bonde de graça e bebia vinho de caju na fábrica de Tito Silva; gosto mais do Dia da Padroeira N. S. das Neves, quando a gente via soltar balões grandes em formato de peixe, de zepelim, de estrela; do Dia de Procissão, quando mãe acompanhava de pé-no-chão, pagando promessa para ver se doutor Argemiro arranjava um emprego para  papai; gostava até do dia de catecismo, quando padre Almeida, vigário da Igreja de Lourdes, inventou um futebol para a gurizada que assistia à pregação de Dona Adamantina até o fim. Dia da Indústria, para mim, é coisa nova.

            Agora  a gente vê um mundão de chaminé, os Distritos Industriais, as usinas modernas substitutas do engenho bangüê, galpões enormes que o governo faz para vender barato. Minha lembrança da indústria vai lá para 1932, quando Matarazzo comprou a fábrica de óleo do velho Kroncke, que ficava  no fim (ou no começo?) da rua da República, marginando o rio Sanhauá. Não sei o que diabo faziam por lá, que sobravam umas fichinhas de flandres e a gente catava no lixo. Essas fichinhas de flandres valiam como dinheiro na nossa brincadeira de rua, servia para apostar patacho e bola-de-gude, jogar pé-de-parede e até bozó.

            O Dia da Indústria me lembra também uns passeios que dei pela Ilha do Bispo, quando a gente atravessava um pontilhão, pulando de dormente em dormente – embaixo o Sanhauá – e  via a fábrica de cimento despejando pó em cima do povo. Era uma camada de pó cinzento que cobria a ilha toda e ia até o Baralho, lá nas Barreiras. É a lembrança de sinhá Josefa, empregada lá de casa, que mãe disse que morreu botando sangue pela boca porque morava na Ilha.

            Meu Dia da Indústria era diferente do dia de hoje, que é tudo bonitinho, todo mundo calçado,  de macacão, de luva, limpinho; 400, 500, 600 operários almoçando na fábrica, com direito a lanche, a férias, a adoecer. Uma engrenagem de máquina e uma engrenagem social. Uma filosofia de desenvolvimento para o país crescer. Muito bonito, muito bom.

            Meu Dia da Indústria era diferente. Pena!

 

 

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Laureano

(05.06.77)

 

 

            Era menino quando eu e a população de João Pessoa começamos a sofrer o que os jornais chamavam de “martírio de Napoleão Laureano”. Médico novo, jovem cheio de ideais, fazendo a medicina humanitária, atendendo a todos indiscriminadamente, Laureano assumiu uma liderança entre as classes pobres dos bairros e, de repente, ei-lo guindado à Câmara Municipal.

            Vereador era apenas uma posição para fazer mais benefícios, para conseguir maiores vantagens para sua clientela pobre. Mas, foi nessa fase crescente de sua vida que surgiram as primeiras aflorações “daquela doença”. Há 26 anos, o nome daquela doença não era pronunciado, havendo muitas pessoas que somente em falar nela se benziam.

            Constatado o câncer, Napoleão Laureano partiu para combatê-lo em duas frentes: uma, procurando debelar o mal que lhe invadira o corpo; outra, despertando a Nação para o problema. Perdeu a primeira batalha, mas ganhou a segunda. Conseguiu despertar o país inteiro para o problema do câncer.

            Quando o Presidente Getúlio Vargas pôs um avião da FAB à sua disposição para ir ao Rio tentar a cura com um húngaro especialista, Napoleão se aproveitou do oferecimento. Foi recebido por Getúlio no Palácio Rio Negro, em Petrópolis, e no dia seguinte deu entrevista à imprensa, na presença dos maiores cancerologistas da época. Daí partiu a grande campanha para a construção do hospital de combate ao câncer bem como o impulso às instituições estaduais destinadas a combatê-lo.

            As novas gerações ouvem falar de Napoleão Laureano apenas por ser o nome do primeiro hospital para cancerosos construído no Brasil, dispondo de recursos moderníssimos no tratamento e erradicação da doença.

            Nós,  um pouco mais antigos, guardamos a imagem duma campanha apaixonante, que tomou os mais diversos aspectos, romântica e quixotesca ao mesmo tempo. Uma campanha que mobilizou a Paraíba e o Brasil.

            Ontem, data do sepultamento de Napoleão Laureano, fui visitar o seu túmulo, como uma homenagem de recordação da grande campanha. Não interessa se o túmulo estava sujo ou limpo. Ali pude rever, na distância dos anos, a romaria de milhares de pessoas, muitas flores e o ideal imorredouro das grandes campanhas da humanidade.

 

 


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Os Namorados

(12.06.77)

 

 

            - Ôi...

            - Ôi...

            Começou o namoro, tomaram um sorvete, e com mais um tempinho estavam no “fusca” se dirigindo para a estrada de Cabedelo.

            Aí me deu aquela saudade do tempo em que o namoro tinha certo ritual. Havia os olhares preliminares, passava-se várias vezes pela porta da casa da mocinha, um adeus medroso, a mão aberta numa saudação se agitando rapidamente e logo procurando escondê-la no bolso. Depois, só iria vê-la na praça João Pessoa, no domingo de retreta, entre sete e nove horas da noite, antes de “soltarem a onça”.

            Lá vinha ela toda de amarelo, sapato Anabela, de braço com mais três amigas e ficava dando voltas e voltas, arrodeando a praça, rindo alto, falando alto, para chamar a atenção. E a turma nos cantos da praça, esperando a passagem na outra volta.

            - Quando ela vier eu vou encostar.

            - Tu tens coragem?

            Ela sentiu que ia haver a abordagem (as mulheres são muito inteligentes para essas coisas) e passava para a ponta.

            - Posso falar contigo?

            - Num já falando?

            As outras eram uma risada só, o passo mais lento, num alcovitamento muito solidário.

            - Quando posso te encontrar?

            - Domingo que vem.

            - E na sessão das Normalistas, no cinema Felipéa?

            - Só no domingo que vem – e apressava o passo, rindo e galhofando.

            Sei lá, hoje é tudo diferente. É verdade que há uma intimidade gostosa; o namoro nem ao menos começa e o jovem já almoça, janta e até dorme na casa da moça. Começa a participar dos problemas da família, sai só com a moça, vai ao cinema (pelo menos diz que vai ao cinema), vai para a festa, para o clube, para a boate. Mas, isso não tem ritual. É tudo duma vez; numa semana, num mês não há mais novidade. E se inicia uma rotina como se já fossem casados.

            A avozinha vê tudo aquilo com ar abestalhado, a catarata enevoando a vista, mas, vendo tudo. E, balançando a cabeça, lembra-se que foi preciso um ano de dificuldades para seu “velho” pegar na sua mão.

 

 


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O Divórcio, afinal

(19.06.77)

 

 

            Sou do tempo em que o divórcio era tabu. Tinha em minha mente arraigada a intransigente defesa da Igreja Católica pelo vínculo matrimonial através da bênção do padre, que em determinado momento da vida brasileira chegou a ser mais importante que o registro no cartório.

            E me lembro da veemência de muitos padres que arrasavam multidões prometendo o inferno aos amancebados, aos de união livre, aos que vivem em paz e harmonia de cama e mesa, mas não tiveram o “conjugo vobis”. Nesse particular o Brasil estava, em pleno meado do século XX, participando de uma minoria de nações que não tinha aceito o divórcio na sua legislação.

            Há 26 anos, quando Nelson Carneiro apresentou a primeira tentativa legislativa para a adoção do divórcio, apontavam-se a dedo os casais “indignos” de convivência social. Lembro-me até de uma autoridade que não pôde brincar um carnaval no Cabo Branco graças a um moralismo muito exagerado do grupo dirigente daquele clube, naquela época.

            Esse episódio, aliás, fortaleceu o carnaval do Clube Astréa, pois a autoridade foi convidada pela também austera, mas arejada diretoria do Astréa para freqüentar seus bailes momescos. E o casal foi para mesa de pista (era autoridade) e um séquito de amigos, parentes e contra-parentes, que, indignados, prestigiaram o então já animado carnaval astreano.

            Depois, a população duplicou. Os tempos mudaram. Os jovens se precipitavam. Os desacertos conjugais aumentaram. A segunda tentativa matrimonial passou a ser uma opção válida. Esses casais “diferentes” passaram a ser muitos, e a sociedade foi se acostumando. Novos países foram revendo sua legislação. O divórcio avançou, deixando de ser tabu. Qualquer jovem, qualquer senhora casada opinava a seu favor sem o menor constrangimento. Foi o começo.

            No plano legislativo, os parlamentares foram perdendo o medo de votar pelo divórcio, pois a posição divorcista não tirava mais votos. Era, até ontem, apenas um ponto de vista pessoal do eleitor, que já não deixava de votar no deputado ou senador pelo simples fato de ser divorcista.

            O divórcio sempre foi polêmico e mesmo após a aprovação pelo Congresso por 219 x 156 votos, a divisão de pontos de vista continuará. Basta dizer que em razão do divórcio, no tempo de Henrique VIII, a Inglaterra criou o Anglicanismo, antepondo-se à Igreja Romana, que não quis concordar com o divórcio do famoso Barba Azul. Se a Itália, a sede da Igreja Católica, admitiu o divórcio mediante plebiscito, por que o Brasil continuar fora do contexto mundial?

            Na madrugada do dia 16 de junho o Congresso Nacional atualizou o Brasil.

 

 



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São João

(26.06.77)

 

 

            Os clubes da capital enfeitam o salão de bandeirolas, arro- deiam-no de pé-de-milho, plantam bananeiras, acendem fogueiras imensas. E soltam fogos de muitos cruzeiros, com bacamarteiros e bandinhas. No meio do salão uma fogueira de mentirinha, bem arrumada, um ventilador dentro, uma luz vermelha e papel celofane esvoaçando. É o São João da capital.

            São João fajuto. Forçado. Umas quadrilhas superensaiadas, tudo dando certinho, os rapazotes de bigode a lápis, as mocinhas com muito rouge e batom, umas tranças supostas.

            São João fajuto. Encomendado. Picado de boi, vinho do Rio Grande vendido em copo, muito rum e grogue, empada, pastel de nata, sanduíche. E misturando tudo isso uns pratos de canjica, milho cozido e milho assado.

            São João fajuto. Programado. Uma cartomante de araque botando cartas para as mocinhas (há um homem louro no seu futuro, dinheiros pelas portas da frente, vejo muitos filhos) e uma cigana falsificada lendo a linha do amor muito grande e muito cheia.

            Por isso todo mundo corre para o interior, onde o São João é natural, não é forçado, não é encomendado, não é programado. Não é fajuto. É o São João que não tem rum nem cerveja, mas tem “zinebra” e conhaque São João da Barra. Onde o rouge das meninas é de tinta de papel de seda vermelho; onde a quadrilha é desorganizada, mas todo mundo brinca; onde no intervalo da quadrilha tem coco-de-roda, cantando um velho estribilho que todo mundo sabe ( “a maré bateu no toco, e o toco bateu no mar” ); onde se bota uma bacia d’água junto da fogueira para a gente saber se no outro ano ainda está vivo; São João em que as solteiras enfiam uma faca na bananeira para verem a letra do seu bem; São João de muito beiju e pé-de-moleque.

            São João de fogueirinha de porta em porta; São João de matuto e matuta sem preconceitos. Um São João onde a madrugada é alcoviteira nas fugas com as “cavaieiras” para o banho da cachoeirinha ou para a palhoça de Mestre Zuza. São João dos meus verdes anos, de forró e baião, de mijão e peido-de-véia. São João de Galante, Taperoá, de Forte Velho e de Ribeira. Meu São João!

 

 




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Agricultura em três estágios

(03.07.77)

 

 

            Meu primeiro contato com a agricultura foi plantando uns pés-de-milho no fundo do quintal lá de casa, na rua do Portinho. Meu pai ia abrindo as covas em fileiras, e eu  botando de três a quatro caroços e fechando os buracos com o pé, empurrando a areia preta do quintal. Minha mãe reforçava a idéia de que menino plantando, a planta ia crescer igual a gente. Todo dia  eu ia perto do muro para ver se o milho estava nascendo. A alegria foi grande quando começou a aparecer a primeira folhinha, verde e rala, do primeiro pé-de-milho. Essa foi, pois, a minha primeira noção de agricultura, carregada de esperança em ver crescer a planta para poder colher as espigas pelo São Pedro, com a satisfação enorme de quem construiu uma coisa muito especial.

            Depois disso, como que esqueci a agricultura por muitos anos e nem ligava que o pão tinha que vir com ela, que o óleo de fritar ovo estava ligado à agricultura e o café-da-manhã dependia da plantação. Foi quando o governo, de repente, disse pelo rádio, pelos jornais e pela TV: “Plante que o governo garante”. Aí eu me lembrei dos meus pés-de-milho, plantados sem nenhuma ajuda, garantido somente pelo cuidado que tinha em olhar todo dia e fazer chou-chou para espantar as galinhas que iam ciscar o meu milharal.

            Agora me vem novamente a agricultura pela fala dos seus representantes, dizendo que a agricultura vai acabar, que não tem dinheiro para ampliar a produção, que o crédito fica restrito, que o custeio fica no que estava, que o financiamento de fertilizantes está parado, e que tudo isso está sendo feito em nome do combate à inflação, que está devorando tudo, inclusive a agricultura, que nos alimenta e faz divisas para a gente pagar as contas do gringo.

            Desses três estágios da agricultura, fico com aquele sentimental dos meus pés-de-milho do fundo do quintal, que não me causava receios, nem implicações complexas ou crises artificiais, mas que me garante a doce lembrança da infância querida, “que os anos não trazem mais”.

 

 


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Mudanças

(17.07.77)

 

 

            Desde muito tempo que ouço falar dos transtornos de uma mudança e eu mesmo já passei por muitos dissabores na hora de deixar uma casa para ir morar em outra.

            Os aborrecimentos começam pelo simples fato de sair de uma casa onde a gente já estava acostumado. Há sempre um motivo que chateia ou constrange. Ora é o dono que precisa da casa, ora é a gente que vai morar com parentes ou arranjou financiamento no BNH, ora é o despejo por falta de pagamento, e em todos os casos o cara já se sente azucrinado.

            Mas o pior de tudo é o que se perde na mudança. Uma gaiola velha que durante anos foi morada do melhor concriz das redondezas, essa vai para o lixo; a caçarola furada; um bocado de lata de leite vazia (guardadas para quê?); aqueles pratos rachados que foram do casamento.

            - Bota tudo isso no fundo do quintal.

            A mulher comanda tudo, com a energia de quem realmente manda na casa. “Bota isso fora”; “isso fica”; “deixa isso aí, que dá atraso”.

            De repente, aparecem uns vizinhos, uma empregada velha, uma pessoa qualquer e começa a dar pitaco e a perguntar:

            - A senhora vai querer esse ferro velho de engomar? Nem presta mais.

            - E essa quartinha que está com a boca quebrada?

            O homem da carroça não fica atrás. Começa a enxergar troço velho, que não presta para quem está se mudando, mas serve para aumentar suas posses.

            - Esse tamborete quebrado, a senhora não precisa não, ?

            E  vem a menina choramingando: “Mãe, botaram minha boneca no lixo; aquela que tia me deu”.

            - Não chateia, menina, depois a gente compra outra.

            Estabelece-se uma confusão de ordens que a casa fica parecendo um navio corsário em plena abordagem: “Mata essa barata aí”, “junta as chaves num cordão”, “viu se ficou alguma coisa na despensa?

            - O fogão fica, que é da casa.

            - Sai do meio, menino, que os carregadores estão vindo com o guarda-roupa.

            Quando chega na outra casa, piora tudo. Botaram fora o que não deviam, trouxeram o que não prestava. No meio dos papéis velhos ficou a crônica que Zaguinha ia escrever para esta edição. 

 

 


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Associação Paraibana de Imprensa

(07.08.77)

 

 

            Estou com mania de mexer em alfarrábios, arrumar bugigangas, rasgar papel velho, selecionar arquivos, com uma inveja danada do companheiro Hélio Zenaide, que tem a paciência dum monge na guarda de papéis e estatísticas das coisas da Paraíba.

            E foi mexendo numa papelada velha que encontrei uma carteira antiga da Associação Paraibana de Imprensa, assinada pelo inesquecível José Leal e a poetisa Clélia Lopes de Mendonça, há 29 anos, no tempo em que escrevia alguns artigos para o “Estado da Paraíba”.

            Veio-me, por isso, a lembrança da atuação do “velho” José Leal à frente da nossa gloriosa API, de muitas tradições, de muita luta e também de muitas dificuldades para sobreviver e demonstrar prestígio. Houve momentos em que, sem querer diminuir o valor dos nossos coleguinhas do batente, a API era José Leal. Como secretário durante algum tempo, quando a sede ficava na Duque de Caxias, num primeiro andar, em frente ao Bradesco, constatei que a API se confundia com José Leal. Era o nosso decano quem dava nome à API. Nome e prestígio.

            Tivemos momentos difíceis, com o Estado Novo de Getúlio Vargas e a censura do DIP, em que sua serenidade não prejudicava o exercício da liderança. Quando tinha que defender um colega o fazia com altivez e coragem, sempre na defesa da liberdade de imprensa, ele que sempre escreveu, ao seu modo, o que quis.

            Essa crônica, aliás, vem muito a propósito da próxima eleição para a API, atualmente presidida pelo valoroso companheiro Gonzaga Rodrigues. Quando me disseram que seu mandato estava no fim, fui logo dizendo que ele tinha que continuar. Um mandato só para Gonzaga não nos permite usufruir o prestígio de sua liderança, principalmente depois de provocar na Universidade Federal a abertura do Curso de Jornalismo e na CEHAP a construção de muitas casas para a turma de jornal. Ele pode até se danar por essa onda de queremismo, mas já estou com uma corriola de lápis e papel pedindo o seu “fico”, pois será mais uma forma de prestigiar a nossa API, homenageando a inteligência viva do jornalismo paraibano, o bom colega, o melhor cronista, o Gonzaga do mais gostoso papo da paróquia.

            Como no tempo de José Leal, a API se confunde com Gonzaga. Ele tem que ficar.

 

 



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Anistia

(28.08.77)

 

 

            O Presidente do Senado Federal, Sr. Petrônio Portela, em entrevista concedida quando esteve na cidade de Duque de Caxias, RJ, para receber medalha e título de cidadania, disse que a anistia não constava da agenda de negociações políticas.

            Realmente anistiar 4.841 pessoas atingidas pelas medidas punitivas de atos institucionais (cálculo do prof. Marcos Figueiredo em sua tese de mestrado) pode ser precipitado. No entender do ilustre senador do Piauí, segundo os jornais, essas pessoas não estariam “preparadas para isso”.

            É provável que sejam instituídos cursos especiais para preparar essa gente que desde 1964 teve seus direitos políticos suspensos. Poderíamos sugerir, em vez dum curso normal de quatro anos, a freqüência a um Cursinho Especial, pois em menos de seis meses essas figuras atingidas bem que poderiam se preparar para serem anistiadas.

            Também é verdade que em outras situações não fora preciso tamanho zelo, valendo lembrar o caso de Aragarças, em que o presidente JK não esperou que os majores Veloso e Lameirão se preparassem para receber a anistia. Nem os punidos de 30, nem os paulistas de 32, nem os comunistas de 35 e os integralistas de 37 se prepararam para receber a láurea da anistia. Como também os tenentes de 22 e 24.

            Fora daqui, Portugal também não abriu colégios de preparação para milhares de portugueses punidos pelo governo salazareano, nem a Espanha de Franco instituiu cursos de adaptação aos punidos por uma ditadura de mais de 40 anos.

            A anistia é algo assim como o fim de uma guerra, em que todos voltam aos seus lares e aos seus afazeres com a assinatura da Paz, cantando e sorrindo, fruindo os direitos e deveres de todos os cidadãos, numa plenitude em que todos se igualam.

            Se o problema é de preparação, que se institua logo um Mobral pró-anistia, antes que a morte se antecipe e anistie os catalogados do professor Marcos Figueiredo, como já fez com Lacerda, Jango e Juscelino.

 

 

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Vamos Pechinchar

(04.09.77)

 

 

            Nas minhas rodas de pif-paf sempre se falava na história daquele bom amigo de muitas posses, robusto e corado, alegre e extrovertido, grande companheiro de cartadas, varando noite adentro  com as sensações do pano verde, mordendo seu charuto, e sempre na desconfiança de que lhe estavam aplicando algum golpe. Homem de muitos gestos e muita conversa, ele mesmo contava o episódio duma noite em que perdia, àquele tempo, cinco contos de réis, mas ia ficando, ficando, e ficou até às cinco horas da manhã na doce esperança de recuperar o dinheiro perdido.

            Saiu do Cabo Branco, meio sonolento, resmungando pela perda dos cinco contos e foi direto para casa. E foi aí que a perda dos cinco contos valeu por mil.

            Encontrou sua santa mulher à porta de casa, discutindo com o verdureiro:

            - O senhor está muito careiro. Faça o maxixe a cinco por um tostão.

            Esse diálogo o velho companheiro de cartas não se cansava de repetir, o remorso lhe roendo a consciência.

            - Pois é. Enquanto eu perdia cinco contos, a mulher acordava cedinho para “pechinchar” tostão com o verdureiro.

            Essa recordação vem a propósito da nova ordem de “pechinchar” como eficiente fórmula de combater a inflação. Deve ser um novo ingrediente elaborado no laboratório de experiências das autoridades, muito afeitas a soluções inventivas para males duradouros.

            Mas, estou em dúvida com quem “pechinchar”. Pechinchar com quem? Com o bombeiro da gasolina ou com os árabes? Com o balconista da farmácia ou com os laboratórios estrangeiros? Com o diretor do colégio ou com o Ministro da Educação? Com o bodegueiro ou com o supermercado? Com o açougueiro ou com o frigorífico?

            É uma dúvida que me assalta. Mas, não tenho dúvida de atender ao apelo milagroso, certo de que a nossa inflação não está muito lá em cima porque,  àquela época, a virtuosa esposa do amigo de pif-paf já a combatia discutindo com o verdureiro.

            De qualquer forma, vamos pechinchar.

 

 

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A Importância de Dizer

(09.10.77)

 

 

            A distância entre o pensamento e a palavra é muito grande. Os filósofos sempre disseram que o pensamento é o instrumento de ação mais rápido que se conhece. É por isso, talvez, que a cada passo encontramos pessoas gesticulando, falando às pressas, muitas vezes alto, como que querendo acompanhar o pensamento na sua velocidade espantosa.

            Em muitos casos é um exercício para o discurso, é um treinamento para o diálogo, a preparação para falar. Pena que na maioria das vezes a palavra faleça ante a platéia, a voz não acompanhe o pensamento diante do interlocutor, e o que resulta é um gaguejo ou o simples silêncio.

            Não é um defeito de fonia, é uma ocorrência psicológica. É o receio, é o medo de dizer. Mas dizer é da maior importância para o bem das pessoas e futuro dos povos. Quanto custou a Galileu dizer que a terra se movia, todos nós sabemos. Mas devia deixar de ser dito? E Bruno Giordano também disse. E Jesus Cristo e Lincoln, disseram. E Prometeu também: “Resisto.

            Em todas as épocas a importância de dizer sempre foi responsável pelas transformações do mundo; impérios se engrandeceram e declinaram, porque foi dito; homens se enalteceram e se humilharam, porque foi dito; houve o avanço e o retrocesso, porque foi dito.

            É preciso que se diga, porque o pensamento não nasceu para ficar embutido. É dizendo que se faz o debate, é dizendo que se cria o diálogo, é dizendo que se exercita a palavra, promove-se o gesto, garante-se o consenso.

            A convergência de idéias só é alcançada quando a palavra não tem medo nem rebuços. Doce ou seca, adjetiva ou substantiva, floreada ou não, a palavra é o verbo. Tem que ser dita. É dizendo que o caminho se encurta e cedo se chega aonde só a palavra pode nos levar.

            Vamos todos nós dizermos, porque é importante dizer.

 

 

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Monsenhor Pedro Anísio

(06.12.77)

 

 

            70 anos de ordenação como padre está completando o nosso mais antigo professor de português. Padre Pedro Anísio era daqueles professores que o Liceu oferecia à rapaziada de sua época com a auréola de “mestre”. Tinha curso em Roma, fazia parte do Cabido, sacerdote atuante, fundador do Círculo Operário, de escolas profissionais, orador sacro no velho estilo de Bossuet e Vieira, linguagem caprichosa e suave, a turma gostava de suas aulas.

            Naquele quarto ano de Humanidades, foi quando descobri os segredos da análise literária, que me deu o substrato para poder apreciar gostosamente a riqueza das grandes obras brasileiras e portuguesas. Padre Anísio, no exercício de sua cátedra, se deliciava conosco na interpretação complexa dos textos estudados. Às vezes era o controverso indianismo de José de Alencar que enchia a aula, outras vezes ficávamos descobrindo o lirismo de Augusto dos Anjos, dissecando anatomicamente a “Ricordanza della mio gioventù”.

            Ao final, virava tudo em profunda aula de filologia, que sempre foi o fortíssimo de Pedro Anísio. E o estudo da língua se aprofundava no esmiuçado rigoroso de quem era professor de latim no Seminário. Atentos todos nós, Joacil, Gayoso, Vinagre, Adrião, Lucena, muita gente, acompanhando a palavra do Mestre: “Vem do acusativo. A letra m, consoante momentânea final, cai”.

            Nunca me esqueci. E me serviu num supletivo em que me meti para poder ensinar português no colégio do professor Nery. Quando caiu metaplasmo para falar, puxei de memória as aulas de Pedro Anísio. Foi aquele sucesso.

            Uma coisa que sempre estranhei foi o Monsenhor não ter saído bispo, quando ele tinha toda a embocadura para tal. Não pode ser porque era considerado da velha guarda, porque padre Abath é da nova guarda e ainda não saiu bispo. São coisas da Santa Madre Igreja.

            Só é a frustração que tenho, nesta crônica de hoje, a de não poder botar o título que seria justo: Dom Pedro Anísio.

 




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O Cochicho

(13.09.77)

 

 

            Já ficou arraigado que o cochicho é invenção mineira. Pode ser, mas desconfio que é um hábito de comadres  coloquialmente usado nas roças e cidades interioranas. Aos poucos, o cochicho foi chegando para as metrópoles e ganhou as grandes reuniões. E quando a conversa de pé-de-ouvido che-gou aos palácios aconteceram muitas coisas inesperadas.

            Mas, de tipo de cochicho que conheço o mais importante é o cochicho público. Chega a consagrar qualquer um. Tenho visto muito nego encostar num ministro, num governador, e até num presidente e num gesto de cochicho dizer qualquer coisa, até sem qualquer nexo. É o bastante para fortalecer sua importância política. Chega a consagrar. O freguês parece íntimo, parece fraternal. Um cochicho, um risinho e uma palmadinha no ombro, para completar, têm elevado muita gente a posições de muito destaque.

            É como a história do elefante. Você sabe porque o elefante tem medo dum ratinho? Dizem que certa vez o elefante viu um ratinho numa clareira da floresta junto ao leão, rei dos animais, que descansava após um repasto suculento. Aí o ratinho se aproveitou da mansidão de quem estava refestelado e chegou próximo do ouvido do leão, como quem estava cochichando e dizendo alguma coisa do elefante. Foi o suficiente para o grande paquiderme correr léguas e léguas com medo do ratinho.

            Um conde que nunca caiu de prestígio na  França, indagado pelo rei o que desejaria de sua realeza, pediu apenas que lhe desse oportunidade de todos os dias, perante os cortesãos, abraçá-lo e cochichar-lhe umas confidências. Muito simples seu pedido. Mas, contam que foi um dos homens mais fortes da história da França.

            Ultimamente tenho visto que estamos entrando na Era do Cochicho; eu nem reclamo, nem estrebucho, só sinto que não me dão uma pequena oportunidade de cochichar. Bem que gostaria.

 

 

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Cartões de Natal

(17.12.77)

 

 

            A gente chega nos balcões dos Correios e está uma danação fora do comum, uma fila que não tem mais tamanho, apesar do esforço da ECT, que colocou um reforço de pessoal para atender ao público. É a festa dos cartões de Natal.

            Tem fila para comprar  cartões nas livrarias e lojinhas, e no próprio Correio. A gente compra, já vem com envelope, sela ou entrega para selar nas máquinas, e está feita a mensagem de Natal. É mecânica como a selagem.

            Tem nego que gasta um bocado de dinheiro mandando cartão. Político, já viu! Pega a relação do seu eleitorado, o catálogo de telefone, e manda brasa. Só é ruim quando esquece o nome dum cabo eleitoral. Capricha tanto que manda até cartão para quem já morreu. Como a despesa com selos era muita, os políticos conseguiram que o contribuinte colaborasse. O Congresso é quem paga essa farra natalina.

            Mas, na verdade, esses votos de Boas Festas estão ficando meio cafonas. Frios, automáticos, sem alma, mero registro. Para muita gente ainda é uma lisonja. “Recebi um cartão do senador”, e mostra ao vizinho. Era um felizardo que tinha o nome na lista da secretária do senador, mas nem por isso ele deixa de mostrar aos colegas de trabalho. E ainda enfatiza: “O senador é batata. Todo ano ele não relaxa”.

            Há os que enviam cartões às carradas para tudo quanto é gente, de modo geral para aqueles que lhe estão acima do seu “status”, só para receber a resposta de agradecimento. Esse envelope é guardado com carinho, colocado junto da pequena árvore de Natal para que todo mundo veja. E mesmo quando ninguém presta a atenção, ele mete o trombone no mundo: “Recebi um cartão do deputado”.

            Natal também serve para essas coisas. De qualquer forma força a comunicação entre pessoas que passam o ano se vendo de longe, sem se cumprimentarem, de familiares distantes conhecidos apenas no rol do parentesco. O chefão desconhecido fica mais perto, quando antes era difícil alcançá-lo. “Mandei um cartão para o Presidente”.

            E os cartões de Natal vão entrando na rotina do fim do ano. Uma cortesia que está virando obrigação. É um “ticket”. Como quem entrega o ingresso ao porteiro do cinema. “Boas Festas”, e pronto. Nenhuma idéia de reconciliação, de amor, de paz. Um cartão, somente. Sem força, sem vida, estereotipado, formal. O cartão.

            Recebi muitos, não mandei para ninguém. Mas no meu íntimo estou com verdadeiro espírito de Natal, de humildade, concentrado na fé, invocando esperanças para que todos, os que conheço e os que não conheço, se reconciliem consigo mesmo, sem cartão.

 

 




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O Natal deles

(25.12.77)

 

 

            O Natal é uma festa universal, não só por ser a maior da cristandade, mas por ser aquela em que os corações se abrem, os espíritos se desarmam, e a visão do mundo fica mais cor de rosa.

            Há uma preparação psicológica que dirige a gente para um estado de espírito de intensa alegria, e o povo todo acorre às ruas para o lufa-lufa das compras de Natal. Parodia-se a modinha carnavalesca: Com dinheiro ou sem dinheiro, faz-se o Natal. Os presentes são o ponto alto. Todo mundo na rua procurando um presentinho para o filho, para a mãe, para o irmão, para o amigo, para a lavadeira. E isso dá muita satisfação, grande alegria e bastante contentamento. E os que não podem comprar? Ficam, por acaso, fora desse ciclo de alegria? Não. Esses estão na faixa dos que recebem.

            É roupinha distribuída pelos movimentos filantrópicos, o amigo secreto no recesso das repartições, as cestas de Natal aos gerentes de banco, os tradicionais cartões de Natal que o Correio entrega. É realmente uma festa de muita alegria.

            Há exceções, é natural. Mas a pior delas, a que mostra um Natal sem graça, o Natal triste, é o Natal dos segregados, dos presos, dos exilados. O leitor já esteve preso? Não, não esteve. Já esteve num país distante sem querer? Também não. Pois, caro leitor, esses têm um Natal infeliz; melhor dizendo, não têm Natal. Têm apenas um dia de indagações. Por quê?

            O clima lá é diferente, a língua não é a mesma, os costumes não se assemelham, o comportamento popular é estranho. E o exilado está ali, firme, os olhos furando as fronteiras para ficar mais perto dos seus, o ouvido aguçado ao pé do rádio que dá notícias da terrinha, e a mente perguntando: Por que?

            São cinco mil lá fora sem nosso Natal, mas muita gente aqui tem fé que o próximo Natal deles não seja tão distante. Oremos.

 



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Reunião de fim de ano

(01.01.78)

 

 

            Na véspera de ano o compadre foi chegando na redação e foi logo desabafando: “Vai ser tudo diferente. Não é mais possível continuar assim. Entra ano e sai ano e eu engolindo tudo. Não sei porque sou assim. Não sei reclamar. Cada um lá em casa faz o que quer, parece tudo combinado contra mim”.

            Tomou um copo d’água, botou café na xícara, uma colherinha de açúcar e mexeu, resmungando: “Vou reunir todo mundo antes da meia noite e botar os pontos nos is. Vou fazer uma reunião que nunca houve lá em casa. E não houve por falta de coragem. Mas dessa vez vou dizer tudo, doa em quem doer. Digo tudinho. Não agüento mais aquelas discussões intermináveis na hora do almoço; é o menino que vem nu da cintura para cima; é o outro que só chega quando todo mundo está se levantando; e mais o outro que tem o olho maior que a barriga, enchendo o prato e deixando-o pela metade. É um inferno. Será que ninguém entende que isso tudo está errado? Vai ser preciso reunir todo mundo para baixar um decreto?”

            E o compadre ficava falando, enquanto eu escrevia estas notas: “Eu vejo o Presidente, se reúne com os Ministros para dizer como vai ser no ano que vem; o Governador junta os Secretários para acertar os planos do ano novo; o diretor da fábrica conversa com seus colegas de diretoria, organi-zando as metas de 78. Eu vou fazer a mesma coisa lá em casa. Vou fazer minha reunião de fim de ano, e vai ser antes de abrir a garrafa de champanha. E vou decretar: Na hora da mesa ninguém xinga mais ninguém; nem se fala notícia ruim; nem na mensalidade atrasada do colégio, no dinheiro da lavadeira, na conta d’água que aumentou, na prestação da TV, na dívida da butique, e na conversa de vou sair no carro, isso tudo e mais alguma coisa não vai mais ser assunto de mesa de almoço ou de jantar. Vai acabar tudo no Ano Novo. É um decreto”.

            Acendeu o cigarro para botar gosto no cafezinho, e ia começar tudo de novo, quando o Zaguinha aqui disse que não falasse mais porque também ia fazer uma reunião de fim de ano.

            Só que a reunião lá de casa é na base do americano. E foi o que fiz. Dez minutos para a Saelpa apagar a luz, dez minutos para a televisão tocar o Hino Nacional, reuni todo mundo e sentenciei: “Minha gente, em 78 vamos ganhar dinheiro”.

            E pipoquei a champanha.

 

 

 



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Horóscopos
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(22.01.78)

 

 

            No mundo moderno, como no antigo, a força dos adivinhos sempre influenciou reis e plebeus, que apreciam  submeterem-se às pressões dos presságios e às esperanças dos bons augúrios, partam de onde partirem.

            Não é sem razão que de vez em quando aparecem cartomantes distribuindo umas volantes com promessas de revelar tudo do passado, presente e futuro, indicando desde remédio para os males físicos até a solução para problemas de amor e riqueza.

            Por isso mesmo tudo quanto é publicação, revista ou jornal, mantém firme sua seçãozinha de horóscopo, onde todos vão arriscar se a barra está limpa ou não. Aqui mesmo de lado, já dei minha arriscadinha para ver se a Loteca está comigo, se a semana está boa para amar, se há perspectivas de dinheiro, se há alguma viagem à vista.

            Tenho muitos amigos que fazem muita fé no horóscopo, e como em todos os jornais e revistas a seção é das mais lidas, tenho visto muitos deles comparando para ver se as opiniões horoscópicas coincidem. Quando coincidem então o amigo fica totalmente preso ao vaticínio. Já tenho visto cara que deixa de viajar, e alguns até nem saem de casa com medo de atropelamentos. E ficam apelando para o dia passar ligeiro e assim saírem das influências negativas dos astrais. Tem sujeito que fica até sem coragem de falar com o gerente do banco para reformar seu “papagaio” só porque o horóscopo assinalou “dificuldades durante a semana”, mesmo correndo o risco de seu título ir para cartório. Viagem de avião, nem se fala. Já vi o sujeito voltar do aeroporto, quando leu um jornal na ponte-aérea com a nebulosa informação horoscópica de que “evite viagens”.

            De modo geral os horóscopos são generalidades. Toda a linguagem empregada, não sei se já notaram, é na base do pode ser, do parece. Mas, mesmo assim, a gente se carrega de dúvidas e começa a ter medo dos presságios, deixando-se envolver por um comando à distância que mais prejudica do que faz bem.

            É da própria natureza humana, a dúvida. E ela aumenta quando a gente vê, escrita no papel, a palavra que envolve a mente e obtusa o raciocínio, principalmente quando conta com a chancela dum professor de nome hindu.

            Por isso mesmo eu faço meu horóscopo, no peito e na raça, escrevendo-o no dia-a-dia e convido o leitor para escrever seu próprio horóscopo e viver por sua conta e risco.

 

 


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Carnaval da Velha Guarda

(12.02.78)

 

 

            É bem verdade que o carnaval de hoje é um privilégio da juventude, já se tem dito por aí. Pudera! Não é só o carnaval que foi conquistado pela jovem guarda. Afinal os moços são  maioria em todo o mundo e eles representam mais de 60 por cento de qualquer movimento global. Quem poderia encher um salão de danças num ritmo louco, senão a juventude? Quem agüentaria “três dias sem parar” se não fosse a turma nova? Sem essa!

            Mas a turma da velha guarda também estava lá; uns só para assistir, outros ensaiando uns passos no salão, depois da terceira dose; a maioria, num balanço de elefante, em redor da mesa familiar. Mas lá, firme. Vi muita gente da meia e da velha idade.

            E não estavam sós. A orquestra se encarregava de enxugá-los do seu cansaço. A três por quatro lá vêm as músicas do seu tempo, que são as mais gostosas. E quem não se lembra “dum pierrô apaixonado”, dum “lindo apartamento com porteiro e elevador?” E a jardineira que ficou tão triste?

            A velha guarda poderá estar sempre presente aos carnavais, porque é do ser humano recordar. Enquanto um jovem canta qualquer coisa de arlequim, canta porque a letra é boa e a música também. E vai em frente. Mas a turma da velha guarda faz mais que cantar, porque cada um tem uma história de arlequim para dizer. Ali ela brinca seu velho carnaval.

            Vi lá no Cabo Branco o presidente Manoel Moraes, 83 anos, olhando lá de cima a animação do clube que ele construiu, levando do bairro de Jaguaribe para os contrafortes do mar, contra o ponto de vista de muita gente do seu tempo. E me lembro de suas astúcias incluindo na Diretoria dois diretores da jovem guarda para receber o apoio maciço da mocidade, que lhe deu maioria na assembléia geral, autorizando-o a fazer um clube moderno com dois mil e quinhentos contos.

            Manoel Moraes estava lá, com a família, na mesinha que reservou com seu dinheiro, no Ginásio que tem seu nome. Talvez fosse o folião mais bem recompensado daquele carnaval. Que importa se não lhe fizeram qualquer homenagem? Quando lhe  falei, senti que ele estava ali vivendo um grande carnaval, um carnaval pelo qual, em última análise, ele era o responsável. E me abracei com ele.

            A velha guarda presente.

 

 

 


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Cabedelo em Foco

(19.02.78)

 

 

            Pode não ser tão importante assim, mas Cabedelo está sempre em foco. Aqui mesmo já escrevi umas “mal traçadas” com o título Ex-Cabedelo, quando correu o zunzum de que o nosso porto ia passar a ancoradouro do  Recife. Me aventei e cheguei até a dizer umas inconveniências, logo  censuradas por uns amigos de dentro, que disseram que não, que eram apenas estudos, que o Governo estava diligenciando, que a bancada estava atenta, que a gente tivesse paciência, que o nosso porto ia ficar como coisa nossa.

            Aquietei-me. E tinha razões para me aquietar. Tanta dificuldade para começar o porto, desde Antenor Navarro, no tempo em que o tenente Geisel estava aqui ajudando a administrar nossa Paraíba, pequenina e heróica. E vi logo que era precipitação de todo mundo daqui pensar nisso, quando se estava melhorando o porto, ampliando armazéns, botando guindastes novos, pavimentando tudo, aprofundando o canal de acesso, aumentando o calado com dragagens especiais, um monte de providências.

            Quando a gente menos espera lá vem a notícia dada por um cara de nome difícil, que não conhece nem o nosso Porto, dizendo que Cabedelo vai ser mesmo um subporto, uma filial do  Recife, ancoradouro-auxiliar, e a gente pensando até em terminal de álcool! Ora, já se viu!

            A essas alturas, já deve todo mundo está de lenço branco dando adeus a Cabedelo. Cabedelo vai embora, vai sair por aqui costeando, costeando, passando por Tambaú, pela Penha, pelo rio Cabelo, Pitimbu, pode dar uma paradinha em Pontas-de-Pedras, levando consigo o nosso Sanhauá e o Paraíba para se misturarem com o Capibaribe. Vai para o Recife.

            Só falta mesmo levar os “maru” de Costinha, que garantem a pesca da baleia; parece que estou vendo Cabedelo indo para o Recife levando a rua do Arame, o Pastoril de Futrica, minha Fortaleza restaurada, meu Cabedelo de menino. Ave Maria, acho que dessa vez vai tudinho, se o presidente Geisel, que ajudou a fazê-lo, não der uma penada a favor da gente. Não é possível que o Presidente, que fez Cabedelo, se desfaça dele agora. Só falta mesmo esse apelo, Presidente, que o Zaguinha lhe faz, de coração.

 

 

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Anistia (II)
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(26.02.78)

 

 

            Estamos na vez da anistia. Quatorze anos depois de um governo de arbítrio começa-se se falar sobre anistia com o envolvimento de todo o mundo político e das chamadas forças vivas da Nação. Em Portugal e na Espanha foram precisos 40 anos. Na nossa história brasileira, talvez seja este o período em que mais se demorou a tratar do assunto, pelo menos na República.

            Basta lembrar que os tenentes de 22 e 24, logo foram reabsorvidos pela sociedade e pelo próprio Exército, aonde chegaram a generais, com muito poder de comando. Os vencidos da revolução de 30, como os de 32 em São Paulo, também voltaram às suas atividades normais em tempo relativamente curto; muitos perrepistas voltaram logo ao exercício de suas prerrogativas democráticas. Com Juscelino nem se fala; o episódio de Aragarças foi esquecido muito cedo.

            Assim como o preso sonha perenemente com a liberdade, assim os proscritos se enlevam com a anistia. Mas, anistia requer magnanimidade, não depende, portanto, dos que vão usufruir o benefício, que se assemelha ao perdão para uns, ao indulto para outros, o esquecimento para muitos.

            Era menino e me lembro que quando Café Filho passou uns tempos em João Pessoa, fugido do Rio Grande do Norte, ficou escondido na casa de Guaxinim; na mesma época meu primo Deco, também perseguido naquele Estado, veio se esconder lá em casa. Pois bem, ele só falava nessa anistia. Ele tinha uma inabalável certeza de que ia ser reintegrado nas suas funções, que ia receber uns atrasados, que ia poder trabalhar, que não seria mais marginalizado. Nos meus poucos anos não entendia bem o que acontecera. Meu trabalho era fazer-lhe companhia, jogando gamão, discutindo geografia, enchendo-lhe o tempo. Nem de longe imaginava o que seria essa anistia, de que ele tanto falava.

            Como eu àquela época, há muito jovem por aí só ouvindo o debate, sem saber bem  que isso significa a reintegração dos que foram marginalizados; o aproveitamento de cérebros brilhantes que muito podem ajudar a Nação; o restabelecimento da unidade da família brasileira; a paz nacional.

            A anistia é um ato de superioridade com que os vencedores se redimem, perante a coletividade, dos pecados cometidos durante os regimes de exceção; um ato que dignifica quem o pratica e que não humilha quem o recebe.

            É chegado o momento da anistia, que parece estar agora enquadrada no consenso nacional.

 

 


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Lembranças Sagradas


(05.03.78)

 

 

            Nós da meia idade e muitos de anos mais avançados contam com algumas vantagens que não beneficiam os moços. Dentre essas poucas coisas que dão sabor à vida que vai encurtando está a de poder  recordar as ocorrências que marcam nossa passagem pela desmesurada trilha do destino.

            Só mesmo depois dos 40 é que podemos contar com um manancial de registros para revivê-los, recordando-os. Mesmo os fatos tristes e as dificuldades e percalços vencidos são reavivados com um toque de heroísmo. Muita coisa que na época de sua ocorrência pareceu sacrifício, com o passar dos anos, é contada com um sabor de glória.

            Felizes os velhos, que têm o que recordar. Que testemunho poderemos nós oferecer aos nossos filhos e netos se nada fizemos para contar? É verdade que a platéia dos moços não se regala muito com as nossas histórias, nem notam que num canto de olho há quase uma lágrima a rolar, que no canto da boca há um riso disfarçado. Certo, eles não viveram as emoções que a nossa memória guardou.

            É que os moços estão preocupados com o presente e com as coisas alegres. Na hora das nossas recordações, temos que confessar, há até uma tendência para lembrar as dificuldades, os insucessos, os momentos difíceis. Não sei se por morbidez, mas me lembro muito pouco das gargalhadas de vitória, das palmas de conquistas. Recordo-me bem dos momentos de incertezas, dos espinhos da estrada, dos obstáculos intransponíveis. O choro fica, a risada se esvai. E assim as nossas histórias são carregadas de cores fortes, arroxeadas, plúmbeas. Têm, porém, um sabor especial.

            É mais fácil lembrar da reprovação no concurso público, do emprego perdido, da privação material, do abandono. A glória está em poder contar tudo isso com o espírito de Dom Quixote, com o espírito da sentença persa: “A gente só se arrepende do que não faz”.

            Meu conselho aos moços é de que façam alguma coisa. Pelo amor de Deus façam, porque senão hão de envelhecer sem suas lembranças sagradas.

 

 


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Relíquias

(12.03.78)

 

 

            Desde menino que a gente tem mania de juntar troço. Havia aqueles que criavam os maiores problemas em casa porque começavam a amontoar tudo que era bugiganga que aparecia e inventavam de colecionar. No tempo em que as casas tinham um chamado “quarto-das-malas”, era aí o depósito dessas coleções.

            Quem não fez coleção de carteira de cigarros? Quem não fez? A gente ficava repassando aquelas carteiras, uma por uma, olhando-as demoradamente. Dava-se um valor especial como se fosse uma pinacoteca. Regência, Selma, Yolanda azul, Popular, Dois Amigos eram cigarros de carteira comum, sem muita validade porque era de grande consumo. Mas, Bilontra, um cigarro que apareceu por aqui e desapareceu logo, esse era de cotação alta. Cigarros americanos só vieram aparecer durante a guerra: Lucky Strike, Camel, Phillip & Morris, davam à coleção um caráter internacionalíssimo.

            Essas relíquias eram avaramente guardadas. Ai de quem mexesse na coleção de estampas de Eucalol, na coleção de Balas Brasil e Balas Holandesas, nos selos que Mário Araújo (do Banco do Brasil) dava a gente. Até bola-de-gude entrava na onda de coleção.

            A gente cresce, amadurece, mas os resquícios e a volúpia pela coleção continuam. Só que hoje os afortunados colecionam garrafas de uísque, automóveis antigos, quadros valiosos, livros raros. No fundo, é a força da infância, de que a gente nunca se desprega.

            Há umas relíquias que realmente significam muito e essas duram a vida eterna. É um santinho ganho na primeira comunhão, é o cacho de cabelo do primeiro filho (que as mães guardam carinhosamente), a aliança do companheiro que morre. Caneta é um instrumento de muita valia no rol das relíquias, desde a pena com que a Princesa Isabel assinou a Lei Áurea à caneta que Tancredo Neves recebeu de Getúlio, com a qual o presidente assinara sua Carta-Testamento.

            Uma vez o Presidente João Goulart disse: “Me dá aí tua caneta”. E eu mais que pronto, já pensando numa relíquia, entreguei-lhe minha modesta caneta. O Presidente assinou uns atos; quando chegaram umas pessoas importantes ele simplesmente guardou minha caneta. Sai da sala sem minha relíquia. Mas tenho uma pedra de basalto, preta, pesada, que toma conta dos meus papéis para não voar do birô. Trouxe da Ilha, ela me lembra muitas coisas.

            Só não tenho coleção de ponta-de-cigarro, que agora estão chamando de guimba, por causa dum deputado que roubou a piola do Presidente-Indicado.

            Fico com minha pedra, que veio duma Ilha que tem muitas histórias.

 

 

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Itinerário de Campina

(19.03.78)

 

 

            Campina Grande sempre foi ponto de convergência, entroncamento de passagens, encruzilhada de encontros. Aqui de João Pessoa para a gente ir a qualquer lugar do interior do Estado, ou de Pernambuco ou Rio Grande do Norte, tem que passar por Campina. Isso eu tenho na mente desde menino.

            Quando nos anos 40 quis passar umas férias num sitiozinho de minha mãe, em Jardim do Seridó, lá fui eu para Campina. Ficamos hospedados na casa de tio Bidu. Tio Luizinho saiu para comprar as passagens e conseguiu acertar a viagem num caminhão de Zé Maneco, que ia até Caicó. Fomos esperar a saída do caminhão na feira de Campina Grande. Ficamos ali olhando a feira enorme, o movimento intenso dos feirantes, gente de todos os recantos, e a gente chupando laranja, até o caminhão sair. Às quatro horas da tarde, meu tio meteu-se na boléia do caminhão de Zé Maneco e eu, que era menino, fui para cima da carga e seguimos viagem.

            Aquele friozinho gostoso e a agitação daquela cidade-empório moldaram a primeira imagem da cidade que conheci nos meus verdes 15 anos. De lá para cá, continuo com a mesma imagem, mais ampliada, com o tom de modernidade que aos poucos seus administradores lhe acrescentaram. E fui lá muitas outras vezes, sempre guardando o respeito pela atividade do seu povo indômito, incansável, alimentando um bairrismo que dá progresso.

            Na água que Juscelino inaugurou, estive lá, vendo a festa, participando do banquete realizado no Campinense, pousando na casa do campinense mais libanês que conheço – cônsul Noujaim –, donde saímos altas horas da noite com Euriquinho Chaves, Assis Chateaubriand e Clóvis Lima para comer cuscuz com carne de sol num boteco tradicional perto do Banco do Brasil. Eram as gostosas loucuras de Chatô, sempre com uma condessa francesa ao lado, mostrando-lhe a comida nordestina.

            De Campina me lembro ainda de João Lyra Braga deixando seu almoço, num domingo, para me vender um Dauphine fiado (meu primeiro carro), com a garantia de Ingo Neukranz, da Brasimet, e de Raimundo Borges, da Estrela do Norte, com quem sempre mantive uma roda de bom papo. E as festanças do Clube dos Caçadores nos seus começos, com Aroldo Cruz, Raimundo Luz, Graziela, Marly, Sevy, Ibrahim e Chakib Hammad, sem esquecer o famoso café de dona Carmem, mãe deles, que nos oferecia com muitas verduras, legumes e azeite.

            E a esticada para Galante, para dançar quadrilhas nos São João e São Pedro? Muitas lembranças boas, dessa boa Campina, dessa Campina onde hoje estamos chegando com o Jornal de Agá para juntar duas sociedades que se emulam para fazer uma Paraíba maior.

            Como antes, estou com Campina.

 

 

 


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Semana Santa

(26.04.78)

 

 

            Esta tem sido a época de recordar o Cristo sofredor, da via sacra, da via crucis. É a lembrança dos embates do Homem com o Homem. Jesus, a vítima diante dos seus algozes.

            Não me conformo com essa tristeza da semana santa. Desde pequeno carrego na alma o peso dessa força lúgubre ao se aproximar o fim da quaresma. Houve uma verdadeira preparação de minha infância para o dia maior da morte de Jesus. Quando chegava a semana santa tudo era proibido. Nem cantar, nem assobiar. Nem banho. Varrer a casa? era uma blasfêmia. Havia uma concentração em que o clímax era a imagem sofredora de Jesus. Desde a traição de Judas, a troca por Barrabás, o peso da cruz, as quedas a caminho do calvário, o escárnio da população, a crucificação, o abandono do Pai.

            Sempre reagi à dramatização dessas cenas, que me condicionaram até a adolescência. Não vejo porque continuar, ano após anos, vivendo esse sofrimento. Não entendo, pois se a morte do Cristo foi a vitória da profecia, o milagre da ressurreição.

            Em vez de recordar as tristes cenas de sua vida, prefiro lembrar as vitórias de Jesus. Eu me lembro que exultava quando nossa catequista Adamantina Neves contava para a gente o episódio de Jesus jovem discutindo com os sábios; e ficava repetindo suas respostas inteligentes, como aquela para “dar a César o que é de César”; e as parábolas com que  doutrinava seus discípulos e sua gente, com minha maior admiração pela passagem de Madalena, em quem Ele mandava atirar a primeira pedra.

            É isso que devemos recordar de Jesus, nesta Semana Santa, como nas outras que virão. Jesus humilde, mas soberano; Jesus sem exército, mas abalando o Império Romano; Jesus amigo das crianças, que Ele recebia no seu regaço; Jesus amigo dos doentes, que Ele curava; Jesus amigos dos desesperados, a quem ele oferecia a Esperança.

            Não, positivamente não. Não é uma semana para sofrer porque, repito, a morte de Jesus foi a vitória da profecia, o milagre da ressurreição.

 

 

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O Velho Liceu

(02.04.78)

 

 

            Todos os anos por essa época me vêm as boas lembranças do velho Liceu da praça João Pessoa. Semana passada o Liceu comemorou seus 142 anos e aí é que dei por mim na sorte que tive de ingressar naquele tradicional estabelecimento no ano do seu centenário.

            Era 1936, e lá estava eu como “cascabulho”, com Joacil Pereira, Jamesson Lima, Ubirajara Vinagre, Miron Pereira, José Gaioso, Adrião Pires, Antônio Pessoa Filho e muita gente, lá se vão 36 anos. A gente num corre-corre dos diabos para evitar o trote e “tirarem o cabaço” da túnica de brim cáqui. Lembro-me de Bugiganga, um corpão enorme, reagindo e levando sarrafada dos veteranos, que passavam farinha de trigo e banha no cabelo dele. Ninguém passava em frente do Liceu, no primeiro dia de aula. Era uma festa, meio violenta, às vezes, mas era uma festa.

            É como se estivesse vendo aqueles dias do estudante viril, demonstrando força, ninguém se metendo com a vida da gente. Tinha comício e tinha arruaça, tinha discurso e tinha passeata.

            Em 1938 veio a Copa do Mundo, a primeira de que tomei conhecimento, que teve grande repercussão; era no tempo de Leônidas, o Diamante Negro, cujas peripécias eram narradas pelo speaker Gagliano Neto – o  Metralha –, descrevendo  pelo rádio o desenrolar das partidas na Europa. Quase todo mundo foi reprovado na primeira época. Só se cuidava de futebol.

            Essas recordações me vêm todos os anos durante as comemorações do aniversário da fundação do Liceu. A gente se lembra dos bons professores e dos que a gente não gostava. Outro dia, conversando com Adrião Pires pudemos rememorar tim-tim por tim-tim as reações químicas de Pecegueiro do Amaral, que o professor Benevides recitava com muita erudição. Lembramo-nos das aulas de desenho do velho Stuckert e do professor Pinto; Gazzi de Sá nos despertando para o orfeão, com as toadas de Catulo da Paixão Cearense; os teoremas do professor Albuquerque, que gostava de ficar sentado no banco da praça vendo as morenas passarem; padre Matias, major-revolucionário, dando aulas de geografia e adotando o livro de Raja Gabaglia; Juvenal Coelho, em quem deram um banho de ovos, que quase a turma toda ia perdendo o ano; tem muita coisa para lembrar.

            Imagine um colégio por onde passou quase toda a Paraíba pobre, que quem estudava nos maristas era de remediado para cima. Todo mundo que está aí mandando, sentou praça no Liceu, meu velho Liceu, cujo Curso de Humanidades, bom ou ruim, já dava título de doutor.

            Rendo aqui minhas graças por ter pertencido às gerações liceanas

 

 

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Monteiro Lobato

(23.04.78)

 

 

            O aniversário do escritor Monteiro Lobato passou meio sem grandes comemorações, nem registros especiais, tendo como havido um esquecimento do nosso pioneiro da literatura infantil, na criação sempre lembrada de personagens que chegaram a povoar o mundo sonhador de várias gerações de crianças.

            Durante algum tempo me lembro de ter me grudado na bonacheirice de Dona Benta, mas logo deixei de lado as figuras desse mundo para participar da seriedade dos seus contos (Urupês), com que ele começou a influir na literatura brasileira.

            A figura de Lobato, porém, passou a ter mais força na nossa geração quando se acentuou o movimento pelo “petróleo é nosso”, no que ele também foi considerado pioneiro. Foi com Lobato que eu e minha turma do Liceu passamos a meditar na importância do “ouro negro”, com a campanha já tomando rumos de comício, passeatas, para contrariar a Missão Abink e desmentir a balela de que no Brasil não tinha petróleo. Foi uma campanha que resultou em muitos sacrifícios e muita gente listada como qualquer ista. Não fosse a adesão de eminentes homens das Forças Armadas e políticos insuspeitos, Lobato teria sofrido mais uma decepção. Felizmente, as torres de petróleo que a estudantada levantava nas praças públicas, em madeira, foram levantadas, também, nos poços da Bahia, em Campos, no litoral brasileiro. Foi uma luta e tanto, e os que saíram chamuscados ainda não se arrependem de terem contribuído para a concretização da nossa Petrobrás.

            Relendo seus depoimentos e confissões nas cartas trocadas com Godofredo Rangel (Barca de Gleyre), podemos esperar que as amarguras do escritor paulista iriam continuar. E, paradoxalmente, não está totalmente esquecido porque uma TV resolveu se aproveitar, bem ou mal, de seus personagens infantis.

            Pelo menos, por algum tempo, Lobato continuará vivo.

 



[1] Está restaurada e foi reaberta no local antigo. E tem outra biblioteca pública na Fundação Espaço Cultural.

* A Seção HORÓSCOPO do “Jornal de Agá”, durante muito tempo era feita pelo jornalista Anco Márcio, com o pseudônimo de Professor ATHUALPA.

 

* A anistia chegou em 1979, por força da pressão popular.