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14º Tema A INQUISIÇÃO NA PARAÍBA Expositor: Carlos André Macêdo Cavalcanti Debatedora: Zilma Ferreira Pinto A fala do Presidente: Reiniciamos nosso Ciclo de
Debates, cujo êxito já está assegurado, segundo os comentários nos círculos
culturais da nossa terra. O tema de hoje será sobre a INQUISIÇÃO
NA PARAÍBA, cujo expositor é o professor Carlos André Macedo Cavalcanti, que
convido para vir participar da mesa dos trabalhos; como debatedora, teremos
nossa confreira Zilma Ferreira Pinto, que também convido para a mesa. Tornou-se tradicional fazer a
apresentação do expositor, e é com satisfação que apresento o professor Carlos
André Macedo Cavalcanti, que é graduado em História pela Universidade Federal
de Pernambuco; é Mestre e Doutorando em História; é professor de História
Moderna na Universidade Federal da Paraíba; e atualmente está como Diretor de
Arte e Cultura da Fundação Espaço Cultural. Há dois anos contamos com o
concurso de Carlos André quando fizemos um Seminário de quatro dias sobre a
Inquisição, cujo título foi O IMAGINÁRIO DA INQUISIÇÃO. Foi um evento de grande
profundidade, que contou também com o concurso do professor Severino Silva, da Universidade
Federal de Pernambuco. Por considerarmos o professor
Carlos André um dos credenciados estudiosos dessa área, convidamo-lo novamente
para, agora, oferecer aos participantes deste Ciclo seus conhecimentos e
experiência. Com a palavra o professor Carlos
André. Expositor: Carlos André Macêdo Cavalcanti (Professor de História Moderna na UFPB, Mestre e
doutorando em História pela UFPE; Diretor de Arte e Cultura da Fundação Espaço
Cultural) Sempre que venho a esta Casa tenho a enorme alegria
de encontrá-la na guarda e na plena atenção aos nossos valores históricos e no
culto à memória paraibana e nacional. Sempre afirmo que o Instituto Histórico e
Geográfico Paraibano é, sem dúvida nenhuma, não só vocacionado, como gabaritado
para ser a instituição essencial do trabalho, da pesquisa histórica no Estado
da Paraíba. Assim, reafirmo minha proposta anterior de tornar realidade, por
meu intermédio, se for interesse do Instituto a realização de convênio entre o
Departamento de História e o Instituto, que nos parece ser da vocação de ambas
as instituições. Reafirmo, mais uma vez, que as pontes, os vínculos entre estes
dois grupamentos humanos que analisam a história devem se aprofundar, devem se
consolidar e avançar no sentido de
termos um trabalho de maior vulto em conjunto. Hoje nós teremos duas
apresentações sobre o tema. Farei minha exposição com a temática conceitual e a
debatedora oficial, professora Zilma Ferreira Pinto, vai apresentar um trabalho
dela sobre a origem dos cristãos novos e sua importância na História da
Paraíba. Antes de entrar na exposição em
si, quero saudar a publicação da Revista nº 31 do Instituto Histórico.. A
Revista permanece presente no debate historiográfico com trabalhos essenciais,
importantes, trabalhos que mostram a meticulosidade e a busca da memória na
pesquisa documental e, em especial, menciono o trabalho sobre a Inquisição na
Paraíba, do professor Luiz Mott, nela publicado. É importante que surjam foros
no sentido de pesquisar e debater a Inquisição. É indispensável que esse debate
se aprofunde e se amplie. Durante muito tempo o tema Inquisição esteve
esquecido na historiografia brasileira. Quase tido como não existente. Na verdade, entre nós brasileiros,
já houve a crença de que a Inquisição não existiu em nossa História. Oliveira
Lima, célebre historiador pernambucano, afirmou “estar livre nossa história” da
ação do Tribunal do Santo Ofício. A descoberta dos documentos
inquisitoriais referentes ao Brasil, no acervo do Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, em Lisboa, mudou esta convicção anterior. Sabe-se hoje que algumas
centenas de brasileiros foram processados pelo Santo Ofício, que marcou nossa
cultura com um certo tipo de prática autoritária. A memória atual do ficcional
caso de Branca Dias, na Paraíba, demonstra a força deste passado. Ainda há pouco pensava no
Congresso sobre Inquisição que houve em Lisboa e São Paulo como algo que
deveria ter continuidade. Estive muito tempo na expectativa de receber uma
carta da historiadora Anita Novinsky convidando para o II Congresso sobre a
Inquisição. São 12 anos sem haver a continuidade daquele congresso. Sabemos a
dificuldade para a programação dum congresso como aquele, que durou trinta dias
entre Lisboa e São Paulo, com a participação de pesquisadores do mundo todo,
inclusive da Rússia. E os custos foram enormes. Talvez por essa dificuldade não
tenha se realizado o II Congresso. Sempre que a gente fala sobre o
tema Inquisição, lembro sua semântica, como se referiu um historiador
norte-americano chamado Eduard Peters. No livro dele sobre a tortura, ele
inicia dizendo: “a palavra tortura. uma vez pronunciada, realiza, tanto para
quem pronuncia como para quem ouve, um imenso caldo de emoções”. E, em
função disso, a pesquisa sobre tortura acaba ocorrendo dentro daquilo que
chamamos “entropia semântica”. Entropia é uma palavra da Química: ocorre quando
dois elementos químicos se fundem. Há um momento em que eles não são mais nem
um e nem outro, e ainda não são o terceiro. No caso, a tortura geraria, segundo
Peters, essa entropia semântica. Da mesma maneira ocorre com a
Inquisição. A palavra Inquisição, por si própria, já é suficiente para fazer
lembrar uma série de atrocidades, e principalmente a intolerância religiosa,
que durou tão longamente na história do Cristianismo. Vamos tentar desenvolver nossa
análise dentro de uma tendência da historiográfica contemporânea, cujo
porta-voz mais importante, atualmente, é o Dr. Francisco Bittencourt, da
Universidade Nova de Lisboa. De uns tempos para cá, após a
década de 80, que foi um período de uma produção historiográfica longa sobre a
Inquisição, nós começamos a nos questionar a respeito do uso das fontes
documentais. Já em 1992, sem querer ser
precursor desse processo, aqui na Paraíba, no encontro chamado América 92, que
se realizou no Espaço Cultural, nós estivemos numa mesa de debate em que a
professora Anita Novinsky era a debatedora principal, e nós já colocávamos ali
algumas idéias sobre isso que está se tornando o nosso trabalho mais recente. Nós dizíamos, por exemplo, que
dentro do estudo da Inquisição existe um problema de fontes. Existe uma imensa
dificuldade de fazer uma análise crítica do documento. E existe,
principalmente, uma unicidade de fontes. Raros são os inquisitoriados, raras
são as vítimas da Inquisição sobre as quais nós temos informações sólidas
quanto à sua posição religiosa, quanto à sua possível heresia, fora do
processo. Então ficamos restritos ao documento que a Inquisição nos legou. Eu
chamei isso de ditadura do processo. A professora Anita Novinsky respondeu dizendo
que só havia realmente uma fonte para estudar o Tribunal do Santo Ofício, que é
o processo. Hoje estamos assistindo exatamente
a ascensão deste questionamento. Já naquele mesmo ano o professor Ronaldo
Vainfas, professor fluminense, publicou um artigo num desses livros-compêndios
que Anita organizou, em que ele questionava as fontes e o significado da
análise básica sobre o Tribunal como uma monstruosidade. Hoje, no limiar do novo milênio
que se iniciará em 2001, estamos vendo os estudos sobre o Tribunal do Santo
Ofício mudarem amplamente de significado. O maior desafio diante desta mudança
é retornar o olhar sobre as fontes. Procurei trazer para vocês um exemplo de
uma dessas fontes, que é uma tentativa de conhecermos essa ambigüidade e essa
duplicidade sobre o Tribunal do Santo Ofício. Antes farei duas observações sobre
o artigo do professor Luiz Mott, há pouco citado. Caro presidente Luiz Hugo: o
excelente artigo do professor Luiz Mott pode receber duas pequenas observações
para complementar o trabalho dele. Ele cita dois personagens históricos que
pedem uma análise mais aprofundada. Na página 83, da Revista do Instituto
Histórico, ele fala de Manuel Dias Carvalho, que hospedou o padre Gregório
Martins Ferreira em 1654. Nos Apontamentos Biográficos do Clero Pernambucano
consta Manuel Dias Carvalho em 1654 já como primeiro vigário da igreja de São
Pedro Mártir, de Olinda. Isso permite uma análise aproximada. São Pedro Mártir,
por quê? Mártir, porque era inquisidor. Ele foi assassinado pelos hereges que perseguia,
no século XIII. Para a igreja de São Pedro Mártir, em princípio, segundo o
próprio Bittencourt, colocavam-se pessoas que tinham muita aproximação com o
Tribunal e que fossem bastante afinadas com os princípios da Inquisição. Então,
este personagem ao mesmo tempo recebe em casa alguém que está sendo perseguido
pelo Tribunal e, no entanto, está nomeado para a igreja de São Pedro Mártir.
Vale então uma pesquisa mais aprofundada a respeito dele. Um outro é Francisco
Pereira, cristão novo que aparece nas listagens de Mott nas páginas 86 e 87 e
que tem um homônimo, ou ele mesmo também nos Apontamentos do Clero
Pernambucano, que é um padre jesuíta expulso de Pernambuco em 1760, na leva de
expulsão dos jesuítas por Pombal, e que poderia ser a mesma pessoa. Para essas colocações eu me ponho
à disposição do Instituto no sentido de encaminhá-las ao professor, sugerindo
uma continuidade. Retornando à nossa exposição,
quero registrar que a Inquisição sempre aparece nos jornais, nas revistas, na
televisão, na mídia, citada no meio de alguma notícia ou ela mesma como a
notícia mais importante. E ela sempre aparece referida como um escárnio ou
monstruosidade. O Tribunal da Inquisição tem os seus sinônimos que foram
referidos recentemente numa matéria publicada no CORREIO DA PARAÍBA, dia 24 de
outubro de 99, intitulada “Bruxas expressam a magia e a força interior
femininas”. Lá para as tantas, fazendo uma observação, a repórter diz: “Ao
pensar em uma bruxa, a imagem que se tem é daquela senhora voando em uma
vassoura. Seria engraçado se não fosse tão sério. As pessoas não lembram da
velha Inquisição, onde inúmeras vidas foram tiradas, muitas vezes sem se provar
a culpa da vítima. Tempos longínquos de proibição em que a mulher deveria casar
virgem, servir ao homem sempre com a disposição que lhe fosse possível”. Essa afirmativa mostra uma
expectativa que se tem sobre o estudo do Tribunal do Santo Ofício. Muitas vezes
estuda-se o Tribunal em torno do seu sentido, como uma instituição que
representa um anátema histórico e uma negação do seu próprio tempo. Vamos
buscar a recolocação desse Tribunal através das suas origens mais distantes,
mais longínquas. E aí nós buscamos fazer uma divisão do tempo, que serve para
reformular essa visão um tanto maniqueísta. Nós dividimos o tempo
inquisitorial em duas fases. Uma fase vai da sua fundação ou das atividades
inquisitoriais que se formam na Península Ibérica no final do século XV –
a sua fundação oficial é na década de
30 do século XVI – até 1640 e uma segunda fase vai de 1640 até a sua extinção
em 1821. As duas fases nós buscamos dividir segundo conceitos. A primeira nós
conceituamos como a fase da Pedagogia do
Medo e a segunda nós conceituamos como a fase da Pedagogia do Desprezo. Durante toda a primeira fase, que
ocorre no século XVI e primeira metade do século XVII, a característica
central, principal, que carrega o Tribunal do Santo Ofício é aquilo que Jean
Dulumo chamou de “medo obsidional”. É um período, em toda a Europa, não só na
Colônia brasileira, e não é exclusivo de nenhuma das nações, é um período –
repito – que se desenvolve a idéia de que a qualquer momento poderia haver uma
degeneração da civilização. Acreditava-se, por exemplo, no medo que se tinha do
mouro invasor, que era um medo real, porque o mouro muitas vezes tentou chegar
ao centro da Europa; acreditava-se no medo de bruxa, que era um medo muito
viável nas expressões mágicas da cultura naquele momento; acreditava-se no medo
do cristão novo, uma figura imponderável (o cristão novo é imponderável porque
nunca se sabe o que ele será, ele não é só indefinido, mas é também inexorável,
ele pode a qualquer momento judaizar alguém); então se acreditava também no
medo do cristão novo; acreditava-se no medo das magias originais, anteriores à
cultura da cristianização. Nesse período de medo obsidional, de sentimento de
cerco, de uma civilização que se sente posta contra a parede e quase esmagada,
nesse período o Tribunal do Santo Ofício foi o realizador, o efetivador de toda
uma cultura de expectativas de que a modificação e a transformação do mundo
ocorreriam com a regeneração da ortodoxia católica. Esse é o primeiro momento.
Momento da Pedagogia do Medo. O segundo momento nós chamamos de Pedagogia do Desprezo e nele vamos
procurar esmiuçar mais o tema. Ele vai de 1640, na realização de um novo
regimento, até 1821, após o período de reforma do Tribunal do Santo Ofício.
Essa é a fase de reconstrução e de reformulação da intolerância do Tribunal. O
que ocorre nessa fase nos interessa mais de perto porque é nela que se dá a transformação
das expectativas que a sociedade tinha sobre o Tribunal. E é nessa fase que
teria ocorrido, na Paraíba, ou pelo menos ocorre na tradição oral paraibana, o
caso de Branca Dias, tão decantado. Por três séculos os judeus não
tiveram sossego em Portugal. O Tribunal do Santo Ofício da Santa Inquisição
processou aproximadamente 52.000 infelizes. Destes, algo em torno de 41.000
devem ter sido judeus e cristãos-novos. Uma das bases de sustentação deste ato
de intolerância está em trechos do próprio Livro Santo, interpretados pelos
inquisidores como sendo uma ordem divina de perseguição aos infiéis judeus.
Textos de Isaías e do Deuteronômio abasteciam os inquisidores. Essa intolerância chegou ao
Brasil. Aqui, fez vítimas e criou um ambiente de medo e denúncias. O estudo
desse período passa pela análise da personagem Branca Dias. Há três Brancas.
Uma delas já tem a existência histórica comprovada: viveu em Pernambuco e foi
processada pela Inquisição como judaizante no século XVI. Há uma outra que
teria vivido em Apipucos (hoje município do Recife), mas sem documentação
comprobatória de sua existência. A Branca que nos interessa teria vivido em
Gramame, Paraíba, no século XVIII. Se Branca Dias não é comprovada
historicamente, se ela não existiu historicamente e realmente ela não tem
comprovação de existência ou qualquer documentação, nos interessa, no entanto,
como um objeto básico de memória e como uma exposição essencial daquilo que a
sociedade imagina como tendo sido o Tribunal do Santo Ofício. É memória no
sentido aristotélico. O momento é muito propício para
debatê-la, pois a “nossa” Branca vai para nas telas de cinema em breve. No novo
ciclo de crescimento do cinema brasileiro aparece o projeto do cineasta Davi
Kulock e da roteirista Sílvia Lonh para um filme ficcional sobre Branca Dias. O
filme deverá ser rodado no próximo ano. Branca Dias é a “personagem”
histórica – ainda que ficcional – mais controvertida da Paraíba. A biografia
dela é repleta de fatos contundentes. Sua própria existência é posta em dúvida.
Branca foi, segundo o “Livro de Branca”, de J. Abreu, uma judia vitimada pela
Inquisição. Naquela época – século XVIII – os judeus viviam sob o terror da
conversão forçada decretada desde o século XV, obrigando os “filhos de Israel”
a se tornarem cristãos na marra. Até o Papa chegou a questionar tal
obrigatoriedade, mas acabou se deixando levar pelas pressões do Império
Português. Com a conversão, o judeu – que pensava se livrar da perseguição após
ter se convertido – passava a ser tido como cristão-novo ou criptojudeu, ou
seja, cristão nas aparências públicas, mas ainda judeu nos hábitos e no
coração. A história de Branca é
paradigmática. Teria sido vítima da paixão anormal de um padre que desejava a
judia a qualquer preço. Em nome do amor que tinha pelo noivo, também judeu,
Branca resistiu a todas as pressões. A história é marcada pelos mitos que
formam o imaginário da nossa gente. Tendo ou não ocorrido, sob a narrativa
heróica está o mitologema mais caro da alma luso-brasileira: a “saudade do impossível”. Esta saudade
conduz Branca ao embate suicida contra os inquisidores. Ela sabe que não poderá
ter uma vida normal ao lado do seu amado. Sabe que poderá perder tudo para o
confisco inquisitorial. Sabe que só lhe restará “lembrança do que TERIA SIDO a vida sem a Inquisição”. Mesmo assim,
Branca não se entrega às pressões do padre... e morre queimada por causa de seu
destemor. Nós, brasileiros, buscamos este
paradigma heróico em nós mesmos, nos nossos políticos, nos nossos artistas e
até nos jogadores que representam o “país do futebol” na Copa do Mundo. Branca,
tendo ou não existido, leva em si um pouco da nossa alma. Ou, para usar o termo
científico forjado por Arnold Toynbee (um dos maiores historiadores deste
século), Branca Dias diz muito do “espírito de uma época e de um povo”. Branca teria sido a realização de
uma das características do imaginário colonial brasileiro muito bem definidas
pelo antropólogo francês Gilbert Durand. Ele diz que o nosso imaginário é
composto de vários mitologemas e dois desses mitologemas vão nos interessar
especificamente para o estudo da Inquisição. Num deles ele coloca que a nossa
cultura é caracterizada pela saudade do impossível; isso é realmente a nossa
cara. Nesse mitologema haveria uma constante expectativa de retorno ou de
realização daquilo que se sabe impossível. Ele vai no exemplo de S. Sebastião –
sebastianismo – (não vou me alongar sobre ele, o rei que desapareceu e que
deveria retornar) e tenta conhecer a alma brasileira e alma lusitana afirmando
essa saudade do impossível como uma formulação essencial do Tribunal do Santo
Ofício. O Tribunal é a realização do oposto essencial da noção de saudade do
impossível. Não se tem saudade daquilo que é impossível se não houver a
realização da impossibilidade. Nossa sociedade teria, no Tribunal do Santo
Ofício, o realizador desta impossibilidade naquele período (século XVII/XVIII). O Tribunal do Santo Ofício
comporia então uma forma essencial de conhecimento da própria maneira de ser do
brasileiro e do português e dos povos ibero-americanos, já que ele teria
forjado na nossa cultura um dos seus pontos civilizadores essenciais. E aí a gente entra por outra
discussão, que é difícil de admitir e difícil de contextualizar. Porque como
disse no começo da exposição, a idéia de Inquisição surge sempre para o debate
e sempre que estou diante de um plenário, falando sobre Inquisição, eu imagino
que expectativa o plenário tem sobre o tema. Que conceito anterior nós
carregamos e sempre que foi possível captar. Aqui, naquele curso já mencionado,
nós fizemos por escrito. As pessoas chegaram a escrever. Eu distribui um
pequeno formulário perguntando às pessoas o que elas acreditavam o que fosse a
Inquisição. Depois dos formulários prontos concluímos que, mesmo para aquelas
pessoas, algumas alunos de história, o Tribunal não tinha uma explicação
histórica essencial, não tinha uma explicação histórica factual, não tinha uma
explicação histórica cabível. Por que? Porque aconteceria como uma imposição de
um grupo diante do resto da sociedade. Então, a visão durandiana de
análise do imaginário permite que a gente comece a compreender aquilo que
talvez nos seja difícil compreender. Que este Tribunal, sendo o que foi,
intolerante, arrogante, engendrando o terror, como engendrou, foi parte da nossa
civilização, foi parte daquilo que nós somos hoje; foi parte dos valores que
geraram a nossa sociedade. Ao contextualizá-lo historicamente, ao trazê-lo de
volta àquilo que é factível, nós fazemos o que Max Weber esclarece muito bem:
não é possível analisar um objeto histórico, a não ser pela suposição de que
ele, no momento que ocorreu foi valor
ativamente aceitável, no momento foi valor ativamente bom ou tido como correto.
Isso é que é duro no Tribunal da Inquisição e na análise da Inquisição. Aí é preciso fazer outras
separações ou distinções: como membro dessa cultura herdeira do Tribunal,
dentre outras tantas variáveis, mas também herdeira da Inquisição, e enquanto
membros da fé cristã. Trata-se outro movimento difícil de realizar para poder
chegar à análise do Tribunal, ele mesmo. Eu mesmo, como católico, desde o
início foi difícil de manter-me na fé, que é de mim e da minha família, e ao
mesmo tempo analisá-la no seu momento mais difícil, no seu momento de
arrogância, no seu momento de imposição. Essa é outra distinção essencial de se
fazer. É necessário que nós façamos, não que procuremos a neutralidade em
relação ao objeto estudado, mas que procuremos a objetividade. Conhecê-lo
objetivamente e de nada adiantaria, como coloca Petters, aumentá-lo na sua
monstruosidade apenas para denegri-lo, porque, ao fazê-lo, estamos criando algo
que não existiu. Graças a essa análise durrandiana,
da “saudade do impossível”, poderemos fazer algo que torne, para vocês, uma
exposição mais interessante. Deixamos de lado a análise de
casos pontuais e buscamos a análise do documento histórico como base da
mentalidade inquisitorial. Os processos deixam de ser o processo de João, o
processo de José, o processo de Maria, mas o processo organizado e estruturado
por determinado inquisidor ou por determinada mesa inquisitória. De modo geral, a análise se limita
a apanhar o livro falando de uma visão geral do Tribunal do Santo Ofício,
depois faz alguns conceitos e em seguida faz estudos de casos. Francisco
Bittencourt, autor desta obra essencial para o estudo do Tribunal do Santo
Ofício, que ainda está um pouco desconhecida no Brasil, que acaba de chegar por
importação – HISTÓRIA DA INQUISIÇÃO – PORTUGAL, ESPANHA E ITÁLIA – fez toda a sua pesquisa com um grupo de 45
pesquisadores espalhados nos três países durante um período que soma dez anos
de trabalho e, neste livro, realizou a análise do Tribunal sem analisar um
único caso. Nós não chegamos a esse ponto, nós não radicalizamos tanto, mas
vamos tentar passar para vocês o que seria uma análise simbólica do Tribunal, o
que seria uma análise do imaginário do Tribunal, dele mesmo, não para aqueles
que foram inquisitoriados. Essa é uma idéia essencial. É muito fácil quando nós
vamos falar do Tribunal do Santo Ofício, como faz, por exemplo, o próprio
professor Mott, ir à análise dos números.
Encontramos, facilmente, na reação da platéia, aquela decepção com os
números. Quantos foram inquisitoriados? 40, 50, na história do Tribunal na
Paraíba? Quantos foram para a fogueira? (Um aluno da minha disciplina de
Inquisição dizia que estava sentindo falta do churrasco, depois de ler o
trabalho). Quem afinal foi queimado? Quantos foram para a fogueira? Um? Talvez
dois, se a gente levar em conta as informações da documentação que chega nesse
Projeto Resgate. Será? Nos números, nas estatísticas, no valor dado ao que nós
chamamos “estatística do sofrimento”, o Tribunal resume-se a um punhado de
gente. Nós buscamos evitar esse reducionismo e partimos para a compreensão da
sua simbologia e do seu significado. O Tribunal era essencialmente um
tribunal moderno, um tribunal do regime absoluto e da monarquia absoluta. A
essência da mentalidade de um inquisidor era a soma entre a hierarquização da
fé e a utilização hierárquica da fé, ou seja, o seu prestígio enquanto
inquisidor, a política que rodeava esse jogo de prestígio e a efetivação dos
mitos de pureza presentes no imaginário da cristandade muito antes da formação
do próprio Tribunal. Buscando, daqui e dacolá, nós
chegamos, por exemplo, a algumas citações bíblicas, que eu vou reproduzir para
vocês. E que eram utilizadas pelos inquisidores. Nem tudo que encontramos
poderemos utilizar aqui hoje, porque consultando a co-orientadora da minha tese
sobre as citações que gostaria de fazer, ela não concordou, informando que era
contra o regulamento da feitura de teses. Mas concordou com as citações da
Bíblia. Essas citações bíblicas eram
feitas pelos inquisidores. Eram feitas nos processos? Não. Eram feitas nas
correspondências dos inquisidores, pouco estudadas; eram feitas na documentação
relatorial da Inquisição, essa muito menos estudada; eram feitas na visita que
autoridades de outra instituição faziam. Por exemplo, alguém do Vice-reinado
presente em Goa anotou a justificativa teológica apresentada por um inquisidor,
isso também nunca foi levado em conta. O que ocorreu, realmente, nós devemos
admitir, é que no momento em que se abriram os arquivos inquisitoriais no
século passado e neste século, e agora na abertura dos arquivos do Vaticano, os
historiadores se fixaram em casos. Ainda um dia desse vi na ISTO É ou
na VEJA alguém dizendo que os arquivos não tinham sido abertos. Mas na verdade,
eles foram, só que a fila é muito grande e as exigências também. A fila está
para o ano 2001. Se você chegar hoje no Vaticano e buscar uma pesquisa no
arquivo a resposta que eles dão, pelo menos me deram por Internet, é para maio
ou junho de 2001, e ainda exigem uma série de apetrechos técnicos e
intelectuais de quem vai visitar. Por exemplo, o domínio absoluto do latim e do
latim arcaico na pesquisa do documento. Mas eles têm razão, senão vai alguém
para lá que não sabe, e fica tomando o lugar de quem sabe. E além disso, eles
aconselham (eu fui aconselhado) a ter uma carta de apresentação de alguém da
Igreja. Melhor que antes, que nem uma carta de apresentação do Papa abria o
arquivo. Houve uma evolução muito grande. Qual a expectativa dos
historiadores que estão indo ao arquivo do Vaticano, agora? Mais uma vez o
estudo de casos. Bittencourt teria anunciado que vai com sua equipe para lá e
deverá fazer a análise desses documentos, cujos códices nós vamos ter para
revelar e que são documentos de ação do Tribunal fora dos processos. Citarei, a seguir, alguns trechos
bíblicos como origem do mitologema dessa hierarquização da fé. São trechos
interpretados pelos inquisidores como facilitadores e justificadores da ação
inquisitorial. Não estou dizendo que eles são; foram interpretados
assim. O desejo de interpretar é de cada um. Vejamos um desses trechos: “(...) o Senhor
espera o momento em que terá misericórdia de vós (filhos de Israel), e ele
exaltará a sua glória, perdoando-vos, porque o Senhor é um Deus de eqüidade;
ditosos todos os que esperam nele. (...) E
(antes desse tempo feliz) o Senhor vos dará o pão da angústia e a água da
tribulação; porém, (depois) fará com que nunca se afaste de ti o teu
doutor; e os teus olhos estarão vendo sempre o teu mestre. E os teus ouvidos
ouvirão a sua palavra, quando clamar atrás de ti (dizendo): Este é o caminho,
andai por ele; e não declineis nem para a direita nem para a esquerda.” (Isaías,
30, 18 e 20 – 21) Essa observação, feita por um
inquisidor em sua correspondência, seria a justificativa da perseguição aos
cristãos-novos, perseguição aos judeus e ele chega até a dizer, com mais ênfase,
com mais determinação do que o próprio Tribunal, principalmente no século XVII
que a Inquisição não deveria ficar restrita apenas aos que já se converteram.
Porque vocês sabem que o Tribunal apenas agia sobre quem se convertia. Em
teoria, o Tribunal tinha como princípio agir sobre cristãos. Aquele que é
judeu, que não tem obrigação de respeitar as normas da cristandade ou do
catolicismo, não teria, em teoria, a ação do Tribunal. Uma vez que ele se
converteu, à força, por decreto, em poucos dias, então ele pode ser perseguido
pelo Tribunal da Inquisição e a sua ortodoxia pode ser testada pela Inquisição.
Esse inquisidor vai além e chega a dizer que o Tribunal fez pouco ao
restringir-se a isso. Numa outra dessas correspondências
não se encontra o trecho, como se encontrou na anterior, apesar dos erros, mas
se encontra a referência, e na referência modernizada, nessa nova tradução que
os exegetas realizam da Bíblia, com uma edição já existente no Brasil, desde
1992/93, o outro trecho refere-se assim a um outro assunto semelhante. Vejamos
o trecho: “Se o teu irmão,
filho de tua mãe ou teu filho ou tua filha, ou tua mulher que repousa sobre o
teu seio, ou o amigo a quem amas como à tua alma, te quiser persuadir,
dizendo-te em segredo: Vamos, e sirvamos a deuses estranhos (...), não cedas ao
que te diz, nem o ouças, nem teus olhos lhe perdoem (...), mas logo o matarás;
seja a tua mão a primeira sobre ele, e depois todo o povo lhe ponha a mão.
(...)”. “Se ouvires alguns que dizem: Alguns filhos de Belial saírem do meio de
ti, e perverteram os habitantes da sua cidade, e disseram: Vamos e sirvamos aos
deuses estranhos, que vós não conheceis; informa-te com solicitude e
diligência, e, averiguada a verdade do fato, se achares ser certo o que se
disse, e que, efetivamente se cometeu tal abominação, imediatamente farás
passar à espada os habitantes daquela cidade; e destruí-la-ás com tudo que há
nela, até aos gados. Juntarás também no
meio das suas praças todos os móveis que nela se acharem, e queimá-los-ás
juntamente com a cidade, de maneira que consumas tudo em honra do Senhor teu
Deus, e que seja um túmulo perpétuo, e não seja mais reedificada, e não se
te pegará às mãos nada deste anátema, para que o Senhor aplaque a ira do seu
furor, e se compadeça de ti (...).” (Deuteronômio,
13, 6-9 e 12-27. Grifos nossos.) Essa busca de fundamentação dentro
da Bíblia só não foi maior do que uma outra busca, da qual nós poderíamos falar
mais detidamente se tivéssemos mais tempo, que é a busca de fundamentação em
São Tomás de Aquino. Há outras fontes que demonstram esta influência até nos
seminários da época. Essas cartas entre inquisidores de
tribunais paralelos, que trabalham no mesmo império, tinham que ter autorização
dos superiores e teriam que ter uma autorização permanente para que elas fossem
escritas e, possivelmente, elas fossem censuradas. Mas o fato é que maior do
que a busca de embasamento bíblico para a intolerância religiosa foi a busca do
embasamento em São Tomás de Aquino. Quando Tomás refere-se à mística, no sentido
em que ela se origina dos místicos, não a mística cristã, ele, quando defende,
fala de constrição em torno do Espírito Santo, da ligação do fiel cristão com
as regras específicas da cristandade. Vejamos uma outra citação da
Bíblia, que é uma citação que vale uma interpretação: “E Balac, rei dos
Moabitas, disse-lhe: Vem, e levar-te-ei a outro lugar, a ver se é do agrado de
Deus que tu de lá amaldiçoes o povo de Israel. E, depois de o ter levado ao
cimo do monte Fogor, que olha para o deserto, Balaão, o advinho, disse-lhe:
Levanta-me aqui sete alares, e prepara outros tantos novilhos, e igual número
de carneiros. Balac fez o que Balaão lhe dissera, e pôs um novilho e um
carneiro sobre cada altar.” (Números,
23, 27-30) Quando vi essa citação pela
primeira vez fiquei bastante pensativo em torno dela, sobre o que ela podia
significar. No meio de um processo similar surge a justificativa e a
contextualização dessa citação na cabeça dos inquisidores. Talvez só na cabeça
deles mesmos. O que é que eles buscam aqui? Eles pensam que os judeus, que o
povo de Israel, só poderia ser vencido pela intervenção dos adivinhos, dos
feiticeiros, dos mágicos, ou pela anuência de Deus. Então, num processo
ocorreria que uma feiticeira havia sido acusada de realizar o seu feitiço contra
um judeu. Então o inquisidor interpretaria que contra um judeu podia. Esse é o
significado da citação. Ele admite, cascavilha até encontrar algo que
justificasse que contra um judeu, com a permissão de Deus, pode. Ela fez o que
fez porque Deus permitiu. Ela fez o famoso feitiço que impede a realização do
ato sexual. O homem fica incapacitado sexualmente, e que era um processo muito
comum nos processos inquisitoriais e esse impedimento acusatório sobre ela
teria sido fruto de uma paixão dela por ele, incontida, publicizada por ela
mesma e não correspondida. Uma vez que o Tribunal buscava,
constantemente e com firmeza permanente. a base teológica e simbólica da sua
ação, devemos concluir, de imediato, que ele não era aquele monstro que a gente
imaginava. Porque a idéia de monstruosidade é a idéia que ocorre de uma forma
absolutamente sem precedentes, sem contexto histórico. O monstro não se
explica. Explica-se a intolerância, porque a gente começa a tentar conceituar
cientificamente. Explica-se o autoritarismo, tentando conceituá-lo. Mas, o
monstro, não. Quando você diz
“monstro”, fazemos escapar do seu meio, do seu tempo, da sua época e
entregamos ele de volta ao seu passado. Os processos subseqüentes que a
gente analisa são processos com os quais a gente faz um paralelo e para os
quais a gente está começando agora um projeto de pesquisa na universidade,
chamado o “legado da inquisição”. Esse projeto tenta comprovar o que
estou afirmando. Não foi o monstro que deixou o legado e o legado está
presente. E está presente onde? Então fomos atrás de processos que já estão
conosco, que são da República Brasileira, em que delegados, juizes, promotores,
falam frases que, quando são retiradas do seu contexto e comparadas com outras
frases, dos inquisidores do século XVII, a similitude é grande. Perguntar-se-á:
qual dos dois é o inquisidor? Contra negros, contra índios, contra a
religiosidade de origem africana, principalmente, no Brasil da década de 90 do
século passado, das primeiras décadas deste século e até muito recentemente,
realizou-se o retorno, realizou-se a busca no fundo do baú dos mesmos
princípios inquisitoriais. É o que acontece, por exemplo, com os negros da
praça Sinimbu, em Maceió, cujo processo está nos chegando. Em 1928 foram mortos
na rua, porque era coisa de negro, diz o delegado. É o que aconteceu com um
indivíduo que se dizia Zé Pilintra, na década de 40. É o mito interior, a
religiosidade afro-brasileira. Ele diz, eu sou o próprio Zé Pilintra. Foi
preso, passou alguns anos preso, no Rio de Janeiro. Estas nuances de legado que
permanecem, fazem com que a gente tenha muito cuidado ao admitir essa idéia de
monstruosidade. Na realidade, a Inquisição deixou
marcas. Seu legado está até hoje nos valores da sociedade brasileira. Por
exemplo: a recente queda do artigo que condenava a quiromancia no Código Penal
Brasileiro é parte de uma longa história de perseguição e sofrimento. Ao contrário do que possa parecer,
aquela não foi uma lei inócua, que tenha deixado as práticas mágicas à vontade,
sendo exercidas “à revelia da lei”. Pensemos nos milhares de vezes em que a
polícia invadiu, destruiu e espalho terror nos terreiros de umbanda e
candomblé. Isto não ocorreu na Idade Média. Aconteceu no Brasil até os anos
sessenta, com ápice entre 1920 e 1950. Talvez nossa memória seja curta.
Quando o legislador colocou aquele artigo – e outro mais – no Código Penal,
estava legalizando uma prática abusiva de intolerância e autoritarismo. Esta é uma história que vem de
longe. Desde o século XIII, as autoridades passaram a considerar bruxaria como
coisa do diabo. Note-se que ainda não existiam feiticeiras no imaginário
ocidental. A diferença entre a bruxa e a feiticeira está no fato de que a
primeira utiliza-se de ervas e raízes para realizar as encomendas boas e más
que se lhe fazem. Já a feiticeira – entidade surgida no século XV graças à
imaginação de parte do clero católico – é uma sócia do demônio, tendo feito um
pacto com o príncipe das trevas em pessoa. O pacto, em geral, passa pela
sedução da feiticeira pelo “belzebu”... As práticas religiosas que foram
tidas como feitiçaria podem ter origem no “culto da lua”, “religião” anterior
ao cristianismo e que predominava entre os bárbaros do antigo Império Romano do
Ocidente. No Brasil, as religiosidades africana e indígena foram tidas pelo
colonizador como semelhantes à feitiçaria. E, realmente, a fusão destes mundos
ocorreu durante a colonização. Mas, a grande “caça às bruxas” não
ocorreu na Idade Média. Começou após a Reforma Protestante, em plena Era
Moderna. Entre 1580 e 1700 (grosso modo) milhares de homens e mulheres morreram
nas mãos de inquisidores católicos e protestantes. Manuais de demonologia foram
impressos aos milhares (um fenômeno impressionante para uma época em que a
imprensa acabara de ser inventada!) Aqueles que discordaram desta onda de
histeria foram ridicularizados e até processados. Quando a onda arrefeceu, o século
XVIII assistiu a uma mudança de mentalidade: lentamente, as práticas mágicas
deixaram de inspirar medo e passaram a inspirar desprezo. “Coisa de ignorante”,
diria um nobre. É esta a idéia predominante no Ocidente, hoje. A Inquisição foi extinta em
Portugal em 1821. Antes, porém, a Intendência de Polícia copiou boa parte dos
princípios inquisitoriais em voga nos anos 80 do século XVIII. Foi por esta via
que a lei chegou ao Brasil. O Brasil independente herdou a legislação
portuguesa de costumes. Após a República, já no século XX,
aqueles ex-escravos empobrecidos andaram ferindo os ouvidos da gente branca e
esnobe das classes abastadas com atabaques, ditos mandingueiros (coisas de
índios?) e crendices desagradáveis para um país que se queria igual à França. Resultado: a velha lei foi trazida
de volta, para a infelicidade do lado mais fraco desta triste história. É daí
que vem o famigerado artigo do Código Penal banido em 1998. “Toda História é remorso”, disse
Carlos Drumond de Andrade. Esta é uma história que deve ser relembrada. Aqui,
relembramos umbandistas mortos, que foram dilacerados, difamados e queimados
pela polícia de Maceió, numa noite do não tão distante 1928. Seu crime:
reunir-se para cultuar “deuses africanos” num terreiro onde hoje existe a Praça
Sinimbu. Quando vocês forem àquela bonita cidade, sugiro que parem na dita
praça para observar e, quem sabe, orar. E ainda sugiro que seja uma oração de
integração e união entre brasis diferentes e, ao mesmo tempo, já tão
aproximados pelo sincretismo. Mas, na tentativa de entender o
Tribunal na sua contextualização, além de fazer uma análise voltada para esses
mártires, como São Pedro Mártir, a que me referi anteriormente sobre o trabalho
de Luiz Mott. Bittencourt fala em São Pedro D’Abués, que é um santo
desconhecido entre nós. D’Abués foi um mártir inquisidor, em Saragoza, na
Espanha. A ele estou dedicando um estudo porque ele é, curiosamente, esquecido.
Ele não está no Dicionário dos Santos do Vaticano. Há muitos Pedros. Ele foi
assassinado em Saragoza, por judeus, dentro da catedral, segundo a tradição,
morto com uma pancada na cabeça. Então ele foi tornado rapidamente, pelo povo,
um objeto de louvação; formaram-se filas em torno da catedral e os judeus
acusados de matá-lo foram processados e queimados. Seus sabenitos foram
pendurados dentro da catedral de Saragoza juntamente com as armas que teriam
feito o crime e durante muito tempo as pessoas iam ver. Quando o Papa pediu
para retirar os sabenitos, porque as famílias dos cristãos-novos solicitaram ao
Papa a retirada dos sabenitos, porque era algo que denegria a imagem dos que
tinham morrido, o imperador respondeu que não podia, porque se fizesse isso
haveria uma revolta popular no local. Bittencourt, em torno desses mártires,
tenta localizar uma série de iconografias. Para encerrar nossa argumentação
falarei de um desses símbolos, que Bittencourt busca conhecer e entender, que é
muito representativo do Tribunal. Não havendo condições de exibi-lo com
projeção, vocês poderão ver, mesmo de longe, este arco construído em Lisboa,
possivelmente em madeira, no começo do século XVII e chamado Arco dos
Inquisidores. É uma das representações fortes que serviriam para compreender o
significado do Santo Ofício para as autoridades seculares, para o imperador
Felipe III, que passou sob ele, e permitiriam aquela contextualização que evita
a concepção da monstruosidade. Nesse arco, em latim, liam-se várias frases que
representam esta aproximação do Tribunal com o seu tempo. Consta que o rei
parou para ler e comentou, não se diz o que. Havia a seguinte citação
constantínica, do período de aproximação com o poder temporal: “com este
sinal vencerás, assim como as pombas e os simples. Oh, luz da luz, vieste,
afinal, admirado através dos anos. Oh, verdadeira coroa (a do rei), que a tua
própria cabeça machuca”. A idéia de que a realização da
intolerância religiosa é algo que machuca a cabeça do rei, ou seja, de que a decisão
de perseguir, de cercear e até queimar é algo que machuca e gera a infelicidade
daqueles que se vêem obrigados a essa tarefa difícil, foi essencial na
construção do imaginário inquisitorial. E é este imaginário inquisitorial que
nos faz compreender o Tribunal no seu contexto histórico e na sua ação, tanto
no Brasil quanto em todo o império português, como uma instituição não apenas
aceitável, mas considerada moralmente louvável pelas pessoas que viveram
naquela época. Com isto encerro minhas considerações
sobre o tema. · · · A fala do Presidente: O professor Carlos André nos deu
uma visão elevada do que foi a Inquisição, até justificando sua implantação por
parte da Igreja, em face das circunstâncias do momento histórico do seu
aparecimento. No seu estilo de professor
qualificado fez uma interpretação sociológica e psicológica, permitindo-nos uma
nova conceituação sobre a existência do Tribunal do Santo Ofício. Fez o exame,
a análise profunda de uma instituição
que teve sua época, de justificada presença em determinado momento. Foi uma excelente colocação para
nós, leigos na matéria, permitindo-nos vivenciarmos a Inquisição de ontem,
examinada à luz de novos conceitos. Agora passaremos a palavra à nossa
debatedora professora Zilma Ferreira Pinto. Ela é formada em História pela
Universidade Federal da Paraíba, com especialização em Didática, e pesquisadora
permanente. Pertence ao Instituto Paraibano de Genealogia e Heráldica. Além de
ser uma destacada genealogista, dedica-se ao folclore, com vários trabalhos
publicados nessa área, alguns dos quais teatralizados. Passo a palavra à professora Zilma
Ferreira Pinto. Debatedora: Zilma Ferreira Pinto (Professora de História, sócia do Instituto
Paraibano de Genealogia e Heráldica, pesquisadora, e dedicada ao folclore) Parabenizo o professor Carlos André por sua
excelente exposição, que ouvi atentamente. Ao repassar algumas passagens da
História, veio-me à mente a passagem de um poema de Hildeberto Barbosa, no qual
ele conceitua a História como o calendário da miséria universal. Assim falou o
poeta. Estaria de pleno acordo com ele se não tivesse uma perspectiva lírica da
História. É assim que eu vejo a História. Numa dimensão lírica, na qual se
desdobra o trágico e o épico. Quero dizer que nessa dimensão lírica é onde se
impulsiona, é onde se realiza a História, onde se manifesta o sujeito
histórico, que é também o seu objeto. O homem nas suas aspirações, com as suas
necessidades, suas carências. E nestas carências e necessidades nós vamos
encontrar aquilo que o objeto principal dessa minha exposição, que é a família,
a família que nasce dessa atração entre os dois opostos, que é o homem e a
mulher. Sem essa fração, sem essa união, que uma manifestação do amor, não
haveria o sujeito histórico, não haveria o suceder das gerações, então não
teríamos humanidade e muito menos História. Vejamos, portanto, as famílias da
Paraíba na Inquisição. A chegada aqui do Santo Ofício, em
1595, não teve muita repercussão porque a população era muito pequena, foram
cerca de 16 denúncias e os casos mais interessantes foram de bigamia e sodomia,
embora tivessem alguns casos judaizantes. Passemos ao século XVIII, onde
poderemos focalizar as famílias de judeus da Paraíba. Posso mostrar-lhe um impresso, de
autoria de Sérgio Maia, onde se vê a Capela do Engenho Santo André, e onde
foram travadas renhidas batalhas contra os holandeses. Hoje existem apenas
ruínas. O Engenho Santo André é hoje a usina de açúcar Santana, no município
atual de Santa Rita, Paraíba. Nesse Engenho Santo André viveu Clara Henriques
da Fonseca, condenada pela Inquisição de Lisboa, em 17 de junho de 1731. Era
mãe de Antônio da Fonseca Rego, morador no Engenho Velho, município de Santa
Rita, condenado em 6 de julho de 1732. Antônio da Fonseca Rego casou com Maria
de Valença, natural do Engenho do Meio, também na várzea do rio Paraíba, também
condenada pela Inquisição de Lisboa em 17 de junho de 1731 e em 20 de julho de
1756 a cárcere e hábitos perpétuos sem remissão. Foram dois processos. São os
pais dele Joana Nunes da Fonseca, casada com João Soares Filgueira. O casal já
era falecido em 1777. Residia na serra do Martins, Rio Grande do Norte, fugindo
da Inquisição portuguesa. São pais dele Florência Nunes da Fonseca, casada com
João Francisco Fernandes Pimenta. Abandonando o refúgio da serra do Martins, o
casal foi residir em Catolé do Rocha, na Paraíba, no início do século XIX. Três
filhas do casal casaram com dois filhos de Antônio Ferreira Maia. Cosma casou
com Francisco Alves Maia, ela falecida em 2 de março de 1827, ele falecido em 5
de agosto de 1831. Damiana casou com Manoel Alves Ferreira Maia, foi sua
primeira mulher e Maria, a terceira filha dos descendentes judeus, também casou
com o cunhado, o viúvo Manoel Alves Ferreira Maia. Grande parte da família Maia
do Catolé do Rocha tem como herança o sangue dos hebreus, que se perpetua
através dos tempos em todas as partes do globo terrestre. Américo Sérgio Maia,
autor destes apontamentos a que agora me refiro, é descendente de Cosma e
Damiana por parte de pai e parte de mãe. Aí vocês vêem um depoimento muito
bonito, que Sérgio Maia, de saudosa memória, leu aqui numa reunião do Instituto
de Genealogia e Heráldica, do qual foi presidente e fundador. Por aqui vocês vêem a dimensão
lírica da História, o emocionante disso tudo, abrangendo um casal e toda uma
família vítima da Inquisição, que foi levada para Lisboa e tiveram destinos
trágicos. Mas, a História continua. Quando
falo nessa dimensão lírica é para realçar essa capacidade, essa potencialidade,
a força que vem da própria vida, que nem a Inquisição, nem o nazismo, nem
nenhum regime totalitário é capaz de matar. A vida continua devido a esse
impulso lírico. Vemos também, dentro da História
da Paraíba, o deslocamento de famílias, de núcleos familiares daqui da Paraíba,
do Rio Grande do Norte e do Ceará para o interior, para o sertão. O que se deu
juntamente no século XVIII no momento em que se intensificava o povoamento do
sertão. E como diz Sérgio Maia, em sua
visão grandiosa, que é a continuidade da História do povo hebreu; não era só a
história da Capitania, da história da Província, nem da história do Brasil, mas
da história universal. Neste auditório estão presentes
vários descendentes dessa família numerosa, que solicito se levantarem para
receberam nossas homenagens. Conforme ficou acertado com o
expositor, professor Carlos André, caberia a mim fazer alguns registros de
famílias atingidas pela Inquisição, na Paraíba. Assim, quero continuar falando
sobre essa família ilustre da Paraíba. Antônio da Fonseca Rego era filho
de Clara Henriques, como vocês viram. Clara Henriques é uma figura que emociona
quando a gente passa a vista no rol dos culpados registrados no livro de Anita
Levinsky, porque ela emerge como a própria figura da máter dolorosa. Ela era
uma senhora de 71 anos, uma matriarca, parente de todo mundo, porque esses
cristãos-novos daqui da várzea da Paraíba eles constituíam uma grande família:
os Fonseca, os Henriques, Nunes, Pereira, Chaves. Mas todos entrelaçados e
descendentes de dois casais que remontam à época dos holandeses. De Ambrósio
Vieira, casado com Joana do Rego, que por sinal se multiplicam essa Joana do
Rego, de geração em geração e Diogo Nunes Tomaz, casado com Guiomar Nunes, que
também tem outra seqüência de Guiomar Nunes. Pois bem, Clara Henrique morava no
Engenho de Santo André, ali num sítio histórico, e ali toda essa comunidade se
reunia. Se eles foram processados, não foram inocentes, porque eles realmente
judaizavam. Nas suas reuniões celebravam seus sabás, os jejuns de expiação e todo
o ritual do calendário judaico. Clara Henriques foi uma grande
figura e foi presa quando já era viúva; foi para Portugal e não voltou. Deve
ter morrido. Antônio da Fonseca Rego foi acusado de judaísmo e feitiçaria.
Maria de Valença, que foi processada duas vezes, na primeira foi levada para
Portugal em 1931. Quando foi posta em liberdade não pôde voltar e foi acolhida
numa casa de cristão-novos, por sinal na casa de um irmão do teatrólogo Antônio
José da Silva. Como se sabe, naqueles interrogatórios da Inquisição a pressão
era muito grande, e por conta disso ela denunciou o marido, e quando ele chegou
lá denunciou o filho Simão, que deveria ter uns 15 anos. Simão depois se tornou
um olheiro, um espião a serviço da Inquisição. Eu pergunto, teria sido uma lavagem
cerebral? Simão quando foi solto ficou abrigado na mesma casa onde a mãe estava
e denunciou que ela estava preparando o jejum da expiação. Justamente quando
estavam reunidos na casa de um cunhado, para iniciar o jejum, chega o pessoal
da Inquisição e prende todo mundo. É esta a prisão de Clara pela segunda vez,
que já não andava boa do juízo. O processo vai para Roma, demora sete anos para
voltar para Lisboa, sem uma solução em face da sua doença mental. Como não
soubessem o que fazer com ela, mandaram-na para Évora, sendo afinal libertada,
tendo morrido na miséria, mendigando nas ruas de Évora. Simão foi mandado para o Rio de
Janeiro e durante a viagem endoideceu, e ficava dizendo que era judeu, talvez
por remorso, retornando do Rio para Lisboa. Tem também o processo de Luiz de
Valença. Vamos ter notícia de Luiz de Valença porque ele compareceu no mesmo
auto de fé do padre Malagrida, tendo morrido no cárcere. Com esse relato vocês podem ter
uma idéia do que significou a Inquisição na Paraíba. Outra família que também
se tem notícia é a de João Inácio Cardoso Darão. Esse conseguiu fugir aqui das
perseguições, foi para o Ceará e lá se casou com uma moça da família Alencar,
em Barbalha. Depois volta e se refugia em Mari do Seixas, saindo de lá para
Pombal. Era uma família de artesãos, que passaram a arte da ourivesaria para os
filhos. Era uma família pequena. João Inácio era casado com Catarina Liberato
de Alencar. Deles descende o professor Inácio Tavares de Araújo e José Romero
Araújo Cardoso, que é escritor e professor de Geografia em Mossoró. O
interessante dessa família é que eles conservaram na memória familiar a sua
ascendência judaica e conservam viva na
memória a história de Branca Dias, da Branca Dias da Paraíba.. Segundo o
professor Inácio, na memória da família (não tem documento) João Inácio e
Francisco se diziam que eram filhos de Simão Dias Cardoso de Araújo, morador no
Engenho Velho, nas margens do Gramame. Ora, esse Simão Dias aqui da margem do
Gramame é dado, embora não tenha documentação, como pai da própria Branca Dias.
Estou apenas passando aquilo que colhi na família. No rol de culpados de Anita
Novinsky nós vamos encontrar um João Almeida, um Inácio Cardoso e um Pedro
Cardoso, filhos de Francisco Cardoso. Mas esse Francisco Cardoso era o senhor
do engenho, do Engenho Tibiri. Acredito que haja uma relação desses três com
essa descendência de João Inácio Como
se vê, a história continua através da família, que é instituição legítima,
primeira da sociedade. No rol dos culpados de Anita Novinsky,
vamos encontrar um Manoel Homem, cristão-novo, natural do Engenho das Tabocas e
morador no Taipu. Viúvo, senhor de engenho, filho de Antônio de Figueiroa,
lavrador de cana. Testemunha: Antônio Nunes Chaves, 12 de maio de 1732. E nada
mais consta. Mas acontece que no volume II, da Nobiliarquia Pernambucana, vamos
encontrar o seguinte: e o sobredito, Manoel Homem de Figueiroa, que ainda vive
em crescida idade, foi filho de Antônio de Figueiroa, que o era de Jorge Homem
Pinto e de sua mulher D. Ana de Carvalho. Na mesma fonte encontra-se que
Antônio de Figueroa teria nascido em 1634 e Jorge Homem Pinto falecido em 1651.
Poderíamos fazer uma relação entre esse número Homem constante do rol dos
culpados com esse Manoel Homem citado por Borges da Fonseca (fica em aberto o
assunto; trouxe-o apenas para ilustrar). Manoel Homem foi casado com
Margarida de Albuquerque, herdeira do Taipu. Dessa descendência se encaminha
(faltam alguns zeros) para José Lins do Rego. Esse é o Brasil dos 500 anos,
o Brasil das nossas raízes, porque não
se pode fazer uma comemoração, escrever-se sobre a nossa história sem a
história das nossas famílias, a história dos povoadores desses nossos
municípios, porque eles é que realmente fizeram a história. Outra família: Diogo Nunes Tomaz,
esse é o segundo nome. Foi casado com D. Vitória Barbalha Bezerra, neta por via
materna de Duarte Gomes da Silveira. Ele é um ramo do morgado. Como ela não
mostrou arrependimento, foi queimada viva. Ela morava no Engenho Santo André,
mas era pernambucana, tanto que lá é tida como heroína, e nós também, porque
ela morava aqui. Ele era da vila de Serinhaém, e morador na Paraíba. Lá no rol
dos culpados ele é dado sem ofício, já devia ser um homem idoso. Era pai de
Diogo Nunes Tomaz, casado com Catarina Ferreira Barreto, que foi preso em 1729
e vemos, através de depoimento, porque não houve inventário, que ele era primo
da morgada. Tive uma dúvida, mas o consócio Guilherme d’Avila Lins, que é da
família de Duarte da Silveira, mostrou-me um documento constante dum boletim do
Gabinete de Estudinhos de Geografia e História da Paraíba que comprovam a
filiação dela e a sua origem na árvore do morgado. Da descendência dela, quem fez um
trabalho interessante foi Aderaldo Pontes. Eu trouxe esse quadro genealógico
como também um quadro dos troncos dessas famílias, os quais poderei distribuir
cópia com os interessados, logo após o debate. Esses quadros vão constar dum
trabalho que estou elaborando sobre cristãos-novos. Continuando pensando no trágico da
história, porque no trágico está o lírico e o épico, mas nessa dimensão
maravilhosa, onde se encontra todo o impulso da vida, que faz com que a
história continue e continuemos sonhando, vivendo e lutando por este Brasil,
que assumamos nossas origens, assim como fez o professor Sérgio Maia, com tanta
naturalidade, tanta beleza, porque esta mestiçagem que nós carregamos nos
engrandece, mas também nos dá muita responsabilidade. Todos nós aqui temos pingos dos
cristãos-novos, mas carregamos uma civilização de seis milênios; nós temos
nossa herança gótica, tudo isso trazido pelo português, português que já era um
mestiço, que já trazia o sangue mouro, sangue judeu, o sangue celta e tudo isso
nos foi transmitido, e mais a mestiçagem com o nosso índio e com o africano.
Hoje nós somos senhores de uma cultura fabulosa, duma herança cultural que
temos a responsabilidade e o dever de preservar. Por isso que, na minha modéstia,
nas minhas limitações, faço tudo para publicar uma história popular, uma
história de trancoso, onde se transmite nossa história, como esta que está
sendo encenada hoje. Uma história maliciosa que outra coisa não é senão a
versão sertaneja ou da caatinga, que eu ouvi em minha terra, lá em Tacima, de
Ali Babá e os 40 Ladrões. Nós temos tanta coisa bonita da
herança índia como da herança portuguesa, que é fabulosa. Amo muito a minha
cultura ibérica e toda essa mestiçagem que faz do Brasil o Brasil do mulato, o
Brasil do zambo, do mameluco, do cristão-novo, o Brasil do galego lá do cariri
(onde há muita gente galega), esse Brasil maravilhoso. Nesses 500 anos nós
devemos celebrar a chegada das caravelas? Devemos, sim. Porque marca uma
história, mesmo que tenha havido seis mil anos de história para trás, que
tenham estado aqui muitas civilizações, como querem alguns, mas aquilo foi
muito marcante, pois começou um novo período, e é desse período que nós
descendemos. Do aventureiro, do degredado, do capitão-mor, do marujo, de todos
estes que vieram trazendo a sua língua, a sua saudade, as suas cantigas, suas
histórias, seus sonhos e o seu amor. Porque da união deles com as nossas
caboclas, nossas cunhãs e depois com as sinhazinhas, estamos aqui, contando
essa história. 1º participante: Guilherme d’Avila
Lins: Esse tema da Inquisição, é um tema
apaixonante; é um universo em que a gente se transporta sob qualquer ângulo que
se queira abordar. Quando a gente analisa as denunciações e confissões da
primeira visitação do Santo Ofício, sob a responsabilidade de Heitor Furtado de
Mendoça, a gente tem um retalho da
história social da terra naquele período. Os costumes, as tendências
religiosas, as desavenças, as brigas familiares, intrafamiliares e
interfamiliares, são uma das coisas mais lindas que tenho como fonte direta; é
como se estivesse assistindo a um filme daquele tempo. Portanto, é muito
apaixonante para mim o tema da Inquisição sobre os mais variados aspectos. O professor Carlos André falou
aqui do terror. Sem dúvida, a Inquisição criava um terror também para aqueles
que a esperavam ou não a queriam que chegasse. Teve uma passagem da nossa
história, em que o protagonista era um filho de João Ramalho, que disse
qualquer coisa semelhante a uma heresia e um padre jesuíta disse: cuidado com a
Inquisição. Ele disse: Eu matarei a Inquisição a flechas. Ele realmente não
tinha noção do que era a Inquisição. E só quem não sabia o que era a Inquisição
poderia responder dessa forma. Seis meses antes de a Inquisição
chegar no Recife, o irmão mais importante da família dos Nunes, Henrique
Correia Nunes, que vivia em Portugal, diz para João Nunes que se desfaça de
tudo e saia do Brasil. Deve ter mandado uma carta semelhante para o Diogo
Nunes, que foi senhor do segundo engenho da Capitania da Paraíba, o Engenho
Santo André. João Nunes não pôde se desfazer porque a essa altura já tinha sido
alcançado na Bahia sob um artigo para ir até lá ser testemunhas, mas na
realidade ele caiu numa armadilha. Não é sem razão que ela possuía três seções
inquisitoriais. A seção da profissão de fé, em que a pessoa mostrava suas
convicções religiosas; a segunda seção era de genealogia, que tinha como base,
independente do que ia acontecer na terceira, saber a tessitura familiar para
alcançar aqueles que quisessem alcançar; e a terceira era para avaliar o crime
cometido contra a Santa Madre Igreja. Havia confissões do que existiu e do que
não existiu. Tenho um livro sobre os
instrumentos de tortura usados na Inquisição. Era uma coisa realmente fora do
comum. É preciso ter uma cabeça muito patológica para inventar aqueles
instrumentos. Quando não se conseguia alcançar,
por ventura, aquele que a Inquisição queria alcançar, o indivíduo ia ser
relaxado em estátua. Fazia-se um boneco que levava o nome do infeliz para poder
ser queimado. A Inquisição causava um terror
muito grande. A esse respeito tem um aspecto que tem passado despercebido aqui
na Paraíba. O Tribunal do Santo Ofício da primeira visitação chegou à Paraíba e
foi quase inócua. Tinha pouca gente, tinha um caso de bigamia, um caso
interessantíssimo de bigamia, porque o marido e a mulher eram bígamos. É o cômico
da história. Ele fez duas confissões porque a mulher já tinha feito e ele não
sabia, e voltou para dizer que tinha se esquecido. E era uma figura importante.
Era um alto funcionário da Fazenda Real, escrivão da Fazenda Pública, Antônio
da Costa de Almeida. Foram poucas as pessoas
envolvidas, mas há um fato curiosíssimo. Fazia parte do Tribunal do Santo
Ofício, que veio com Heitor Furtado de Mendoça, o frei Damião da Fonseca, abade
do Mosteiro de São Bento de Olinda, a quem o governo da Paraíba estava pedindo
para mandar frades para fundar conventos. E ele, se não me engano, era o
presidente do Tribunal, nesta visitação. No mesmo dia em que aqui chegou, o
presidente do Tribunal do Santo Ofício pede data de terra para fundar o
convento. Quem é que não ia dar? Era de interesse e, agora, de obrigação. E deu. O regimento mandava que o
convento fosse fundado, para valer a doação, em dois anos. Mas quando os
holandeses chegaram aqui em 1634, portanto muitos anos mais tarde, o lugar do
convento de São Bento estava ainda em desenhado, em retângulo, segundo descreve
Elias Herckmans em sua descrição da Capitania, em 1639. Só tinha a demarcação
do terreno. Afinal de contas aquelas terras foram dadas a alguém que
representava o maior terror da época, que era a Inquisição. Não vejo na Paraíba nenhum caso
que se viu na Bahia, na mesma época,
como de feitiçaria do tipo “rito da santidade”. Na Paraíba isso não aconteceu,
como também em Pernambuco. Fiquei imaginando porque a
Inquisição na primeira visitação da Paraíba foi tão boazinha. Será porque houve
o prêmio de consolação do terreno? É possível, porque ela não foi tão boazinha
em Pernambuco. Carlos André, em aparte: Esses documentos não estão
acessíveis, pelo menos não entravam quando fui aluno do Colégio em Olinda. Como
ex-aluno, eu pedi e disseram que são documentos que, pelo período, não estão à
disposição do público no Mosteiro de São Bento de Olinda. Eles têm a
documentação, mas fica na segunda sala. A primeira sala é livre para o aluno,
mas a segunda sala, não. Foi aí que começou meu interesse. O abade, que era meu
professor de Teologia e Latim, se recusava a falar e comentar e pediu que não
falassem mais no assunto. Dizem que hoje está mais liberal. 2º participante: João Batista
Barbosa: Primeiro quero me congratular o
professor Carlos André pela brilhante exposição. Quero fazer duas indagações.
Primeiro, se a Inquisição durante todo o período de sua existência foi exercida
única e exclusivamente pela igreja ou se o poder oficial, ou por delegação do
Santo Ofício, ou por iniciativa própria exerceu também esse poder em alguma
parte do mundo? A segunda indagação. O professor
classificou a Inquisição em dois períodos. Um até 1642, se não estou
equivocado, e outro até o seu fim. Eu queria saber o que foi exatamente o que
determinou essa diferença, essa divisão. 3º participante: Monsenhor Eurivaldo
Caldas Tavares: Eu considero uma verdadeira
audácia minha, depois de ter ouvido tão grandes mestres darem lições a todos
nós, que eu, padre velho, já no final da carreira, ter a ousadia num auditório
tão seleto pedir a palavra para dizer mais alguma coisa. Mas, queria apenas a permissão dos
nossos companheiros, particularmente aqui eu falo pelos que estão mais ou menos
no meu nível, porquanto o estudo profundo do mestre Carlos André e aula de
genealogia da minha confreira Zilma Pinto, do Instituto de Genealogia e
Heráldica também esteve à altura. Agora é um representante do clero,
que não tenham medo, não é um representante do Tribunal da Inquisição, mas é um
estudioso que, durante o tempo de Seminário e depois dos seus prolongados 55
anos de sacerdócio, tem realmente vontade de dizer umas palavrinhas numa
linguagem do meu nível. Algumas pessoas, essas eu tenho certeza porque
confessaram a mim próprio, não sabiam coisa nenhuma a respeito da Inquisição.
Os que foram felizardos em ouvir a exposição do mestre Carlos André, como do
Seminário que realizou aqui em conjunto com o Instituto Histórico, já estão bem
por dentro. Muitos diziam: por que essa história de Inquisição? Então me
lembrei que tinha umas notinhas que tinha escritas, pedindo permissão para ler
essas noções. A tarefa da Inquisição era a de inquirir
acerca da integridade da fé dos fiéis e se constituiu em Tribunal
Eclesiástico destinado à vigilância da fé e ao combate à heresia. Foi o Papa Gregório IX que, em
1231, estabeleceu o Tribunal, confiando às Ordens Religiosas Mendicantes, em
especial, Dominicanos e Franciscanos o encargo de punir os hereges. Quando num país suspeitava-se de
heresia para lá se dirigia o Inquisidor com seus auxiliares para iniciar o
processo. O processo caracterizava-se pelo rigoroso sigilo da informação,
o que fazia com que o acusado desconhecesse seus acusadores; pela negação de
defesa, excluindo a interveniência de advogado; e por último, pelo uso da tortura,
quando o réu não confessava espontaneamente a culpa. A sentença era proclamada
solenemente perante o povo, a que se dava o nome de auto de fé. Após a
leitura da mesma, era logo executada, sendo o inocente posto em liberdade
e o culpado era obrigado a abjurar. Aos contumazes eram aplicadas
penas como penitências, contribuição para obras pias; outras mais
pesadas, como flagelação, prisão temporária, ou perpétua, ou ainda a
mais grave, a pena de morte. Esta última não era pronunciada, nem aplicada
pelo Tribunal da Inquisição, mas pelos juizes civis; a Igreja entregava então,
o réu ao braço secular. Foi sobretudo na Espanha que a
Inquisição assumiu mais rigor e foi mais severa, no combate aos judeus e
mouros. Foi então que se deixou converter em instrumento, muitas vezes, de
perseguição religiosa-política, citando-se o exemplo do celebrado dominicano Thomás
de Torquemada. Os excessos cometidos pelos
inquisidores, mesmo quando pressionados por multidões apaixonadas, por
interesses baixos de cobiça, ou por ódio à heresia, não podem ser negados, nem
muito menos, merecer defesa. Aliás as próprias características do processo que
eram a negação da liberdade, atentavam contra a justiça e a caridade cristã, o
que tornam indefensáveis os seus erros. Por outro lado, a Inquisição
precisa ser entendida, colocando-se a mesma no contexto da época. Com efeito o
Código Penal vigente na Idade Média era por demais rigoroso, sendo comum a
aplicação de torturas e a própria morte como castigo para impedir a repetição
de crimes. É de notar-se que, na época, os
tribunais civis puniam com excessivo rigor certos vícios e crimes, como a
sodomia, a bestialidade, as bruxarias, o adultério, a bigamia, o assassínio. O Brasil nunca sediou
propriamente um Tribunal de Inquisição, era sim sujeito à jurisdição do
Tribunal de Lisboa. Este foi criado em 1536, pelo Papa Paulo III. Sobre sua atuação no Brasil é
interessante conhecer o depoimento do autor do livro A IGREJA NO BRASIL, de
Arlindo Rupert, I volume. Ele escreve à página 273: “Durante
o século XVI, conforme notícias que temos, a Inquisição agiu discretamente;
são conhecidos três processos e uma visita do Santo Ofício, tudo sem maiores
conseqüências. Misturavam-se às vezes, fatos reais de índole religiosa, ou
político social com faltas aparentes ou
supostas, interesses particulares ou tendências perniciosas no campo religioso
e social. Houve certamente acusações fundamentadas e dignas de serem
examinadas. Mas houve outras que nasciam mais da ingenuidade ou de antipatias
pessoais. Ainda não foi examinado todo o acervo da documentação inquisitorial
que traz, felizmente muitas notícias históricas de real valor. O Clero do
Brasil no século XVI, excetuados alguns jesuítas e talvez algum bispo,
mostrou-se pouco prestativo às exigências inquisitoriais, quase sempre moderado
por ocasião de algum processo ou denunciação.” Segundo o mesmo autor: “Pelo
direito vigente, os Bispos eram, em suas dioceses, inquisidores da fé. Mas como
no Brasil, além dos cristãos-velhos, havia já bom número de índios e escravos
africanos convertidos, o Inquisidor-mor do Reino, Cardeal D. Henrique, a 12 de
fevereiro de 1579 passa comissão ao Bispo D. Antônio Barreiros, com faculdade
de inquisidor apostólico para que “possa conhecer das coisas que nas ditas partes
do Brasil sucederem tocantes à Santa Inquisição, sendo as pessoas culpadas dos
novamente convertidos somente e as determine com quais padres da Companhia de
Jesus, que das ditas partes se acharem, especialmente, o Pe. Luiz da Grã,
enquanto lá estiver.” Tratava-se, como esclarece o texto
citado, apenas de índios e negros convertidos à fé católica, aconselhando ao
bispo e jesuítas que “usem nisso prudência cristã, moderação e respeito que
se usa de todo o rigor do direito com os já convertidos”. Deduz-se daqui que o Santo Ofício
não era o que muitas vezes pintam os adversários da Igreja!... E conclui Arlindo Rupert, à página
284, de seu livro: “Não obstante as falhas que se podem apontar contra todo
e qualquer sistema repressivo, não é lícito nem honesto ver na atuação da
Inquisição ou Santo Ofício somente a face negativa.” Houve também vantagens para a fé e
os bons costumes,
evitando-se tolerâncias em demasia com desvantagens para a pureza da fé ou com
tropeços dos mandamentos divinos, visto que a Inquisição não empregava
somente a repressão, mas também a persuasão para corrigir desvios na fé ou
nos costumes. Ademais para muita gente que se deixa levar mais pelo temor que
pelo amor, por muitas causas que não é o caso abordar, toda ação coercitiva,
quando psicologicamente bem orientada pode ter seus reflexos positivos.
Aliás, o Santo Ofício, que era antes do mais um Tribunal Eclesiástico que tinha
em mente mover o culpado a reconhecer seu pecado, detestá-lo e prometer
emenda. Só em casos de pertinácia agia com penas que variavam segundo a
gravidade do delito e a renúncia ao perdão. No Brasil, felizmente, durante o século
XVI, não temos a lamentar a pena capital entre os nascidos na terra,
mesmo quando encaminhados ao Tribunal de Lisboa. O livro DENUNCIAÇÕES E CONFISSÕES
EM PERNAMBUCO – 1593-1595 de autoria do inquisidor Heitor Furtado de Mendonça,
reeditado pelo historiador José Antônio Gonçalves de Mello, constitui
importante documentário contendo o teor inteiro de diversos autos de fé
e revela um verdadeiro retrato dos hábitos, usos e costumes da população
brasileira naquela época, bem como da vida sócio-econômica da Capitania de
Pernambuco. Inclui confissões e denunciações relativas a Pernambuco, Itamaracá
e Paraíba. O original que trata do primeiro
auto da Santa Inquisição que se celebrou na Capitania da Paraíba aos 8 dias de
janeiro de 1595, refere textualmente: “No édito da fé dá o senhor
visitador 15 dias de termo para de toda a dita Capitania da Paraíba virem
perante ele denunciar o que por qualquer modo souberem que qualquer pessoa
tenha dito, feito ou cometido contra nossa Santa Fé Católica e que tem a
Santa Madre Igreja. E no édito da graça concede o dito senhor 15 dias de
graça e perdão, para que, os que nele vierem de toda a dita Capitania da
Paraíba perante ele confessar suas culpas e fazer delas inteira e verdadeira
confissão, sejam recebidos com muita benignidade e não lhe dê pena corporal nem
penitência pública, nem se lhes seqüestrem nem confisquem seus bens, como
melhor e mais largamente se contém e declara nos ditos éditos”. (Obra
citada, páginas 123 a 125). Tais documentos autênticos contêm
entre outras assinaturas, as do Inquisidor Heitor Furtado de Mendonça, do
Governador da Província, Feliciano Coelho de Carvalho, e do 1º Vigário da
Paróquia de Nossa Senhora das Neves, o Padre João Vaz Salém. Registre-se,
ainda, como curiosidade histórica, a existência na época, 1595, não só da Matriz
das Neves, como ainda a Igreja da Misericórdia, de onde saiu solene
procissão até a Igreja Matriz, dentro do ritual da instalação da
Visitação Inquisitorial na Paraíba. Carlos André
Cavalcanti, para
suas considerações finais: Quero agradecer, inicialmente,
pela colaboração que nos deu, à professora Zilma Ferreira Pinto, trazendo para
esse debate o apoio da Genealogia, que
é uma ciência auxiliar da História. E ela deu uma excelente contribuição ao
nosso debate. Agradeço também à contribuição do historiador Guilherme d’Avila
Lins e, especialmente, a segura participação do Monsenhor Eurivaldo Caldas
Tavares, que, sucintamente, traçou um perfil da Inquisição dentro da sua época. Antes de responder às questões
levantadas pelo Dr. João Batista Barbosa, gostarei de oferecer alguns subsídios
à nossa exposição sobre como funcionava o processo da Inquisição. O processo inquisitorial era
bastante diferente do processo da justiça comum dos nossos dias. Tudo se
iniciava por uma das três vias: (1) denunciações, (2) confissões ou (3)
determinação da Mesa. As denunciações eram feitas por
qualquer pessoa que fosse ao Tribunal ou a algum representante dele para
denunciar crime cometido por outra pessoa. Os crimes principais eram
criptojudaísmo, conduta moral tida como pecaminosas e feitiçaria. Quando o sujeito era preso por
causa de uma denúncia, tinha que comparecer diante da Mesa Inquisitorial para
ouvir o inquisidor pedir uma confissão. O preso nada sabia sobre o motivo da
prisão, pois estava em vigor o princípio do “segredo da culpa”. Muitos
resistiram em “confessar”. Alguns tinham noção da acusação de forma muito vaga,
pois alguma maledicência de vizinhos ou amigos já lhe era conhecida. Mas a
maioria não tinha noção do que se lhe esperava. Assim, quando o desespero pela
insólita situação levava a “confessar” mentiras, acabava por somar às culpas
denunciadas por outrem, aquelas que ele mesmo estava comunicando de viva voz.
Dificilmente poderia o réu acertar com o conteúdo da denúncia. Assim, o
processo virava uma bola de neve. Caso dramático foi o do
cristão-novo Antônio José da Silva, O Judeu. Chamava-se cristão-novo todo
aquele que fosse acusado de praticar o judaísmo às escondidas. Mas, na verdade,
a expressão tem origem nos fins do século XV, quando o governo português impôs
a conversão ao catolicismo de todos os judeus que viviam no Reino. Após a
conversão criou-se a estranha distinção: era tido por cristão-velho aquele cuja
família não tivesse sangue judeu; já os novos cristãos passaram a ter a alcunha
que não haviam escolhido. No caso de O Judeu, houve imenso esforço para
confessar aquilo que os homens de fé desejavam ouvir. Antônio José era
teatrólogo. As luzes do século XVIII ainda não haviam aflorado. Seus versos de
poeta brioso não tinham força para livrá-lo do cárcere. Em um desses versos O
Judeu falava “da culpa de não ter culpa”,
clara referência irônica à Santa Inquisição. Na noite em que foi queimado
encenava-se em outro ponto da cidade um de suas peças. Melhor sorte teve o maçom e
jornalista Hipólito José da Costa. Sobre ele, tive a honra de proferir palestra
na Grande Loja Maçônica de João Pessoa. Os maçons do Brasil orgulham-se deste
colega antepassado. Hipólito foi preso no penúltimo decênio de funcionamento da
Inquisição. Eram os primeiros anos do século passado. Enfrentou destemidamente
os interrogatórios, sem denunciar os colegas e sem admitir culpa no fato de pertencer
a uma entidade livre. Hipólito esteve
preso por anos em um cubículo frio e estreito. Conseguiu fugir da cadeia e
chegar a Londres, onde se radicou e fundou o jornal Correio Brasiliense. Retornando às perguntas do Dr.
João Barbosa, posso esclarecer que na França, por exemplo, o ato inquisitorial
era totalmente do Estado. Não havia tribunal eclesial. Em Portugal, no final do
século XVIII e início do XIX, a Intendência de Polícia tomava atitudes
tipicamente inquisitoriais. Mas, devemos admitir, a bem da verdade, que, no
caso ibérico, a ação persecutória foi, essencialmente, do Tribunal do Santo
Ofício. Veja bem: Não foi uma ação da Igreja como um todo, mas especificamente
do Tribunal. Quanto à classificação das duas
fases da Inquisição moderna, ressalto que a mentalidade dos inquisidores diante
do feitiço determinou a periodização que eu criei e utilizo. Até meados do
século XVII prevaleceu o medo de bruxa. Após este momento foi se formando a
idéia de que as feiticeiras eram apenas pessoas ignorantes, o que levou os
homens da fé a terem desprezo por elas. · · · A fala do Presidente: Tivemos hoje uma movimentada
sessão, em que o expositor, professor Carlos André, e debatedora oficial,
professora Zilma Ferreira Pinto, nos colocaram a par do que foi a Inquisição do
Santo Ofício no mundo, em geral, e na Paraíba, em particular. A contribuição dos participantes
Guilherme d’Avila Lins, João Batista Barrosa e, principalmente, do Monsenhor
Eurivaldo Caldas Tavares, completou o objetivo do nosso Ciclo de Debates. Ficamos esclarecidos sobre o
conceito moderno daquela instituição, criada pela Igreja para defender a fé;
analisamos a Inquisição contextualizada em sua época; repassamos o mito
paraibano de Branca Dias; revimos a ação e o sofrimento dos cristãos-novos paraibanos;
enfim, convivemos com os medos dos povos católicos dos séculos passados. Agradeço, em nome do Instituto
Histórico e Geográfico Paraibano, pelos importantes subsídios aqui trazidos à
nossa historiografia, pelos participantes deste exitoso conclave.