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A MINHA HOMENAGEM AO POETA DR. CLEROT

Waldice Mendonça Porto


            Às vezes convivemos com alguém toda uma vida e não o conhecemos. Nada sabemos dos seus sentimentos mais profundos, dos seus sonhos, das suas preferências, então se vai e o que nos fica é aquela sensação frustrante de que perdemos um "ilustre desconhecido".

            O meu caso é diferente. Presto nesse momento uma homenagem póstuma a um homem invulgar que foi em vida Leon Francisco Rodrigues Clerot. Meu tipo inesquecível.

            Guardo as mais caras lembranças desse homem carismático que sabia deslumbrar-se diante de uma flor, de um poema ou de uma paisagem! Além de apreciar os grandes génios, fossem eles da Música, erudita principalmente, fossem eles da Literatura universal versátil em diversos assuntos, convergia para si, ao mesmo tempo, bem definidos e delimitados, o pertinaz garimpeiro arqueólogo, o geólogo, o geógrafo, o mestre em tupi-guarani, o poliglota etc. Porém o que mais me admirava em Dr. Clerot era a sua modéstia que chegava a ser timidez quando se tratava de revelar seu íntimo pleno de musicalidade! Poucos tiveram, como eu, o privilégio de adentrarem ao santuário do seu ser.

            Conheci o Dr. Clerot nesta "Casa de Irineu Pinto", da qual era sócio efetivo, nos idos de 1963, nascendo daí, entre nós uma franca e sincera amizade consolidada através do tempo, aliás, para mim muito curto, sobretudo por ter muito a aprender com ele. Permanece na minha retina este homem cativante, depositário da minha ternura, estima, respeito e a mais profunda admiração como o meu mestre querido, ensinando-me o mister de versejar e os segredos esotéricos desta arte, ainda para muitos de nós mal compreendida, porque não "tocados" ou banhados na Fonte de Castália!

            Dr. Clerot só me trouxe alegrias. Importava-se comigo. Foi no canteiro da minha existência o jardineiro zeloso, cuidando de mim como de uma planta tenra para que crescesse exuberantemente viçosa!

            Deu-me ele o estímulo à auto-estima que naquele momento eu precisava, tanto para desenvolver-me intelectualmente como contribuindo grandemente na formação do meu caráter.

            Gostava de ouvir-me declamando as minhas como as poesias trazidas por ele, sempre como um autêntico mestre, corrigindo-me o vernáculo e a oratória.

            Na sua companhia viajávamos nessas tertúlias impregnadas pelo néctar de olores, os mais diversificados, que se evolavam sem cessar, quase numa atmosfera de eternidade. Sim, de eternidade porque permaneciam no éter, enquanto durou a nossa amizade, e persistiu mais branda, porém, na minha lembrança, depois que ele partiu para o "País do Encantado" !

            Foi através do Dr. Clerot que vim a conhecer as Escolas Literárias, fazendo-me enveredar fascinada pelos mais variados estilos que tão bem as caracterizam, cobrando-me, inclusive, o exercício dos mesmos, tidos como lição de casa.

            Não é do meu conhecimento o Dr. Clerot ter sido alguma vez focalizado como poeta. Esse seu pendor para a poesia permaneceu no desconhecimento dos que privavam da sua amizade.

            Eu me considero privilegiada em ter podido, com o seu consentimento, coletar algumas gemas raras do arcano da sua alma.

            Presto-lhe, pois, esta homenagem, embora que tardia, agradecendo esta oportunidade que me foi dada.

            Enfim, por ter sido incluída no número dos seus discípulos, tenho a honra de neste instante trazer a lume, da autoria do Dr. Clerot, o poema épico inédito "Caturité – A lenda de Potira".

 

Caturité - A Lenda de Potira

Leon Francisco Rodrigues Clerot


Lá em Bodopitá, na serra pedregosa
Vive próspera e em paz a tribo numerosa,
Da qual Caturité é o maioral valente.
Profundamente bom como o seu nome indica,
No alto da Borborema a sua aldeia fica
Voltada para o Sul e para o Sol nascente.

Viúvo, Caturité tem somente uma filha:
Potira – no seu olhar a inteligência brilha.
É de rara beleza, amorosa e submissa.
E o chefe Cariri, que não receia a morte,
Sua tribo comanda intimorato e forte
E pela trilha do bem distribui justiça.

Potira era mulher havia poucas luas,
E o sol ao incidir nas suas formas nuas,
Modelava de sombra os seus seios robustos.
Por gente de outra grei já fora apelidada
Potira, ou seja Flor, por ser considerada
A mais linda mulher dos Cariris adustos.

Ágil como a siriema, ia a jovem Potira
Sempre alegre a tirar o mel da jandaíra
Ou de algum rico exu nas cálidas manhãs,
Banhava-se a cantar n’águas frescas dos rios,
Perseguia na mata os animais bravios
Ou amansava, feliz, suas maracanãs.

Das fibras do caroá habilmente enlaçava
Com seus dedos sutis trançadas que enfeitava
Com penas de guarás, de gaviões e de araras.
Era o enlevo da tribo e ao passar de improviso
A todos distribuía a graça de um sorriso,
Radiosa como a luz das matinadas claras.


II

No extenso chapadão daquela terra agreste
Sopra, insistentemente, o vento do Nordeste,
A lua surge agora avermelhada e baça.
Contristado o Pajé coisas más pressagia.
E ao som do maracá cadenciado anuncia
Que paira sobre a tribo iminente desgraça.

E a triste previsão do Pajé se confirma.
Caturíté recebe um aviso que afirma
Que das bandas do Sul numerosa "Bandeira"
Entra pelo sertão e avança lentamente.
É a horda feroz da lusitana gente
Deixando atrás de si uma sangrenta esteira.

Teodósio de Oliveira Ledo é quem comanda
À "Bandeira" que investe sempre em demanda
Da
conquista final desses sertões ignotos.
"Por Deus e pelo Rei"! A sua tropa vence
Tomando a ferro e fogo a terra que pertence
À nação Cariri desde tempos remotos.

E o fero Capitão cujo imenso domínio
Alarga, decretando a guerra de extermínio
Contra o indígena inerme em luta desigual
Com seus soldados vai sem remorso e sem pena,
Empapando de sangue a paisagem serena,
Maculando o pavês branco de Portugal.

Caturité não dorme e pensa a noite inteira
Nos meios de sustar a marcha da "Bandeira"
Para que então retroceda e não chegue ali.
Pronto a sacrificar a sua própria vida
Ele combaterá com a gente aguerrida
Da tribo Sucuru da nação Cariri.


III

Seus emissários avançam por ínvios caminhos
Convocando em seu nome os maiorais vizinhos,
Dando o alarme, a seguir, pelos sertões ingentes,
Para a guerra de morte os guerreiros proclamam
O levante geral dos Sucurus valentes.

Parte Caturité, tendo o seu grupo armado
De arco e flecha e tacape, e Potira ao seu lado,
Impávida, também disposta para a luta.
Descem o Bodocongó junto da serrania
Que ali perto se eleva, a luta se inicia
A tiros de arcabuz dentro da selva bruta.

Perdura um dia inteiro a cruenta batalha.
O tapuio é vencido à custa de metralha.
Na hora crepuscular do combate renhido
Tomba Caturité gravemente ferido
E entre os mortos na selva abandonado fica.

Vê Potira que vai com os outros prisioneiros
Algemada e escoltada entre os arcabuzeiros.
Algemados também seus companheiros bravos.
Levam-nos para longe, onde irão vendê-los
Nos engenhos do Sul que precisam de escravos!

Já num supremo esforço, a custo se levanta.
De alta febre, o calor resseca-lhe a garganta.
O seu olhar agora estranhamente brilha.
Vacila e em seu coração nutre a forte esperança
De que há de viver até salvar sua filha.


IV

A noite, pelo espaço, escuro véu descerra.
Caturité arfando, alcança o sopé da serra
Que hoje tem seu nome e ali, por fim, se abriga.
Com plantas que conhece o ferimento trata.
Mascara o seu refúgio a viridente mata
E descobri-lo, assim, talvez ninguém consiga.

Desde Jabitacá fortes chuvas caídas
Impregnam de seiva as terras ressequidas.
Do rio Paraíba a torrente que aumenta
Rola e passa a estrugir no pedregoso leito
Que ora largo se espraia, ora se torna estreito,
Mil escolhos levando em sua água barrenta.

A caatinga, ao sair da estiagem prolongada,
Reverdece a esplender num clarão de alvorada
Do nascente ao poente e desde o Sul ao Norte.
É a vida que ressurge, em seu fausto contrasta
Por todo o Cariri a asa negra da morte.

Sentindo-se melhor, Caturité um dia
Sobe ao alto da serra alcantilada e fria
Por entre os catolés vergados pelo vento.
Seu olhar acompanha o serpentear do rio.
Vê junto ao Boqueirão do Cornoió sombrio
A fumaça que sai do luso acampamento.

Sua filha lá está... Já tem seu plano urdido.
De tacape na mão, de arco e flecha munido,
Desce a serra e atravessa a caatinga deserta.
Quase ao anoitecer o campo vê de cima.
E uma forte emoção seu coração aperta.


V

No acampamento agora acendem-se as fogueiras
Para afastar dali as feras traiçoeiras
Que rondam desde cedo aquelas ermas plagas.
Do escuro boqueirão a penedia bruta.
No silêncio da noite o ouvido atento escuta
O sibilar do vento ao resvalar nas fragas.

Teodósio de Oliveira Ledo ali passeia,
Vencendo os Cariris já nada mais receia.
Como Capitão-Mor e cumpridor da lei
Acha que já é tempo de vender os vencidos
E depois que os tiver a dobrões reduzidos
Pagará pontualmente o dízimo Del Rei.

De espada à cinta vai andando a passos lentos.
Entra na sua tenda. Então, no acampamento,
O missionário, junto a uma coivara ardente,
Os vencidos reúne. É hora da catequese.
E faz com que Potira ajoelhada reze
Sem sentir o que diz, sem dizer o que sente.

Potira, em cujo corpo a juventude estua,
Acredita no sol, nas estrelas, na lua.
Teme a voz do trovão que das alturas desce,
De alma cheia de fé revê de olhos fechados
Todo o rito pagão dos seus antepassados
E recusa aceitar um Deus que não conhece.

Pois ela não compreende, em sua ingenuidade,
Porque é que Deus lá do azul da imensidade,
Onipotente e bom, que rege o universo inteiro,
Que dá calor ao sol e às estrelas brilho,
Assiste indiferente ao martírio do filho
Que vai depois morrer pregado num madeiro!


VI

Termina a catequese. Os presos são levados
Para o centro do campo, em grupos amarrados.
Aos poucos a "Bandeira" em silêncio se acalma.
E o religioso que o acampamento assiste,
Diante da abstenção de Potira, desiste
De incutir-lhe a fé que salvará sua alma.

No acampamento, ali só Potira não dorme.
Vergada ao peso atroz de uma tristeza enorme,
Sem saber do seu pai e de mãos algemadas,
Pensa no que será da sua triste sorte...
A desonra, a tortura, o cativeiro, a morte,
São visões que ela vê de pálpebras cerradas.

Caturité escondido acha o momento azado
Do alto de uma caraibeira observa com cuidado
A chama se extinguir no braseiro das fráguas.
Do vento já cessou o sibilante açoite.
Na densa escuridão tristíssima da noite
Só se ouve o marulhar monótono das águas.

Do noturno oitibó imita o canto triste
E nas modulações do seu piar insiste
Como se cantasse longe, vai se aproximando
Até que sua filha o seu sinal entende.
Fremente de emoção ela afinal compreende
Que lá no campo alguém estava lhe chamando.

E conseguiu fugir, mas passado um momento
A matilha de cães que guarda o acampamento
Dá o alarme a latir desesperadamente.
Toda a "Bandeira" acorda, A indignação é grande.
Soltando imprecações sua cólera expande
Em rudes palavrões numa fúria crescente.


VII

Caturité sustém sua filha ferida,
Ouve seu coração: ainda pulsa a vida
E para descansar numa furna se escondem.
Potira novamente os seus olhos abrindo,
Olha para o seu pai tristemente sorrindo.
Ele chama por ela e ela não responde.

Raiam da madrugada os primeiros albores.
Caturité fugindo aos seus perseguidores
Com Potira ferida em seus braços robustos,
Vai pelos meandros onde entre blocos de pedra
O xique-xique cresce e a macambira medra,
Escondendo-se atrás de espinhento arbusto.

Sobe a serra, ao chegar no alto da pedreira
Que outro abismo domina à clara luz do dia,
Que de seus fulvos tons todo o planalto banha,
Vê que o inimigo avança e que o cerco aperta.
Deixando para trás a caatinga deserta
A serra vai galgar numa terrível sanha.

E ali pára afinal. Rápido rememora
Todo o tempo feliz que ele viveu. E agora
Caçado como fera e entre mil horrores
Sua tribo valente a tiros destruída,
Vencida morrerá, mas sua filha querida
Escrava não será de bárbaros senhores!

Recostada aos seus pés está Potira exangue.
Da ferida assassina um rubro fio de sangue
De sua carne em flor pela epiderme escorre.
Caturité carpindo um instante de mágoa,
A alma de ódio cheia e de olhos rasos d'água
Percebe que Potira ali, aos poucos morre.


VIII

Pela derradeira vez olha a caatinga imensa
Onde ao calor do sol, a névoa se condensa
Como em lúrido véu que vai se desdourando.
Na sua alma, também, onde a coragem sobra,
Outro véu de tristeza intenso se desdobra,
Que a pouco e pouco vai seus olhos empanando.

Vozes de estranha fala alcançam seus ouvidos.
Não tem mais ilusões. Sabe que estão perdidos.
Súbita decisão empolga-lhe a vontade
E num gesto de audácia, de supremo heroísmo
Sobraçando Potira atira-se no abismo,
Conquistando na morte a eterna liberdade!

 

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